Verniz
Ninguém sabia o que havia acontecido com Marina nos três dias em que ela ficara sumida. Fiquei em vigília em sua casa desde o desaparecimento, na manhã do segundo dia fui para casa. Dormia de calça jeans quando o telefone tocou, e antes de apertar qualquer botão eu tinha certeza de que a haviam achado.
Agora, sentada em uma velha cadeira na varanda, ela parecia até normal. A perícia na casa abandonada onde ela fora localizada, à beira da morte, revelou horrores apenas vistos em filmes de terror. Restos de roupas, sangue e excrementos humanos, entre quentinhas azedas e latas amassadas. Algumas evidências eram antigas, o que indicava que aquele local já servira de inferno a outros seres anteriormente. Sulcos profundos na madeira da mesa da cozinha revelavam traços de crueldade e tortura nas execuções ali realizadas. E agora eles usavam a casa para outros tipos de violação.
Marina estava nua no canto de um quarto sem janelas, enrodilhada em trapos, e tinha a mesma expressão que agora ostenta. Mirando um horizonte etéreo, com olhos de paisagem. “Não falou nada desde que foi achada” — disse D. Sônia ao meu ouvido — “mal come, nem responde nada.”
- Marina… Sou eu, Diogo.
Nenhuma reação. Sempre quando eu a chamava de “Marina”, assim, completo, ela levantava a sobrancelha esquerda em reação, já esperando que eu falasse sério. Desde o começo do namoro, era Nina. Nina e Di.
- Nina… fala comigo, meu amor… sua família está toda aqui. Até a sua tia de Campos… estão todos preocupados com você… eu não. — peguei em sua mão — eu não me preocupo porque sei que você vai sair dessa. Você sempre sai bem de todas as furadas. Lembra quando você não passou no vestibular? Você chorou muito, eu lembro que a gente não podia marcar nada no sábado por causa do cursinho, e você não passou por dois pontos… Eu fiquei triste, e quando você viu que eu estava chorando, passou as costas da mão nos olhos e disse: “Di… Ano que vem eu passo”. Você é minha Nina, vai sair dessa…
Eu falava aquilo pra mim mesmo, por puro egoísmo. Queria procurar a convicção de que sairíamos dessa. Marina era forte, sempre foi. Na época de escola, ainda menina, ela já demonstrava essa força, essa capacidade de regeneração. Mas e eu? Eu sempre fui um bobo, nunca entendi porque uma menina como ela havia me escolhido. Eu era apaixonado por ela, mas antes do amor vinha a gratidão. Muito grato por ela ter me estendido a mão, a boca, o coração. E agora eu não sabia como ia lidar com isso. Como eu pousaria minhas mãos em seu corpo, sabendo que ele havia sido tão abusado, vilipendiado? Era como rezar em um altar destruído, seria preciso muita fé para projetar ali o que havia dentro de mim. Marcas de queimadura de cigarro, mordidas, pequenas mutilações que desciam a profundezas abissais da personalidade.
- Nina… meu amor… não se preocupe, nada do que aconteceu foi culpa sua… são esses animais, esses brutos que deviam nos proteger… quiseram dizer que foi uma coisa isolada, assintomática, mas não, desde que eles chegaram aqui só fazem atrapalhar a vida de quem mora na favela. São eles os culpados, não você, quem poderia desconfiar que esses caras seriam capaz de tanta monstruosidade? Pode deixar, nada do que aconteceu muda o que há entre a gente, eu te amo, sempre vou te amar… “eu te amo até careca”, lembra? Nina… — eu alisava a sua mão, mas em alguns momentos olhava para suas narinas para ter certeza de que ela respirava.
Assintomático, o jornal chamou. Assintomático é o caralho, um monte de bandido fardado, montaram uma embaixada da desgraça aqui dentro da comunidade e só fazem é achacar. Todo mundo sabia que estavam matando a torto e a direito, o filho de dona Lourdes mesmo, moleque tava trabalhando de carteira assinada, qual o problema de fumar um no fim de semana? Não, bateram em Vitinho até cair morto, depois disseram que ele “estava envolvido com o tráfico”. E agora essa, meu Deus, que horror… E olha que Marina nem tinha sido a primeira! Monstros, malditos, pensam que pobre não tem alma, são iguais aos que defendiam a escravidão.
- Nina… Você tem que pelo menos comer… sua mãe está preocupada, fez até a lasanha que você gosta, aquela com creme de milho… — nenhuma reação. O que ela estava pensando? Por quanto tempo esses ecos reverberarão? — Nina… amor… a gente quer te ajudar… o seu mundo é esse aqui, esquece aquilo tudo… A gente não quer que você conte o que aconteceu, a gente quer você de volta… — só percebi que estava chorando quando a minha saliva engrossou, depois senti as lágrimas — Minha vida é você, Nina… a gente casa quando você terminar a faculdade, não me importo… eu continuo trabalhando no escritório e termino o meu curso à noite… mas a gente precisa que você volte, Marina… eu te amo…
A mão de D. Sônia em meu ombro, minhas mãos em meu rosto, eu tinha perdido o controle.
- Vem, filho… Vamos tomar um café, isso não vai ajudar em nada.
- Já estou indo, D. Sônia.
Marina continuava impassível. Seus pelos finos próximos à nuca não se mexiam, seus lábios não faziam muxoxo, seus dedos não puxavam a barra da camisa. Apenas os olhos abertos denunciavam que ainda vivia, e olhavam apenas para o nada.
- Nina… Volta logo. Prometo que vou tentar superar tudo isso tanto quanto você, e que um dia a gente vai ser feliz. Mas eu não posso fazer isso sozinho, preciso que você volte pra mim. Eu te amo. — beijei seu rosto e levantei com dificuldade, apoiado nos joelhos.
Marina virou levemente o pescoço, sorriu, e voltou à sua posição inicial, estática.
Ali eu percebi que tudo daria certo novamente, e que três dias no inferno podem marcar a madeira, mas nada que outra demão de verniz não oculte.