Muitas cestas no mesmo ovo

Rodrigo Santos
4 min readJul 28, 2023

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O condado de Santo González era próspero: em se plantando, tudo dava. Filho da puta então era mato, crescia na sombra, no sol, na terra molhada ou no sertão do Arsenal. Tudo filho da puta.

No meio dessa pororoca de chorume, uma vocação parecia nata, de tanto que brotava: assassinos. Você perguntava ao pequeno gonzalida o que ele queria ser quando crescesse, e ele respondia de pronto: “Assassino”.

Não era um problema, claro. Não faltavam vítimas, todo mundo podia ser assassino. Tinha filho da puta em abundância — e otário também. Mas é aí que mora o busílis: os assassinos queriam exclusividade.

Cada um carregava a inexorável convicção de que só ele (ou ela) poderia ser assassino em Santo Gonzalez. Ele via o outro matar na sua frente, e pensava: “que absurdo! Mais um assassino neste condado!”. Corpos voavam dos edifícios em El Rôdo, e uns e outros fingiam que eram um fenômeno natural, como a chuva ou a cassação de vereadores.

Como solucionar esse impasse? Muitos preferiam ignorar e seguir matando, simplesmente gozando de maneira quase ascética o beneplácito do assassínio. Matavam aqui, acolá, desde homicídios pueris, a dolosas e passionais ceifas.

E os exclusivistas, os escolhidos de deus, nimrodes sagrados? Esses queriam apenas para si. Publicavam em jornais (jornais ainda têm utilidade em Santo González, há muitas gaiolas de coleirinhas) seus morticínios em neon: “EU SOU O ASSASSINO!”, diziam, como subtexto “e só eu o posso ser”.

Deu-se aí a contenda. O problema do exclusivista, em sua filhounicalgia (que geralmente vem com a egomegalia de comorbidade), é não querer pares. E como fazer, em uma cidade de assassinos?

Começou-se pelo showoff de quem mata melhor. Os assassinatos foram ficando mais espalhafatosos, mais publicizados. Corpos pendurados em retroescavadeiras neon, cadáveres boiando no Rio Alcântara a disputar espaço com capivaras e sofás. Certa vez, um corpo foi desmembrado e seus cotocos espalhados pelos sete distritos e, visto de cima (drones, meu drugue, drones!), parecia um burrinho daqueles de barril, preso por cordinhas, que você apertava e ele se desmontava (muito popular na quermesse de Puerto de Cajas).

Era uma festa. Quem mata mais, quem mata mais bonito, quem posta mais as suas mortes, quem conhece perfis verificados que possas atestar e comentar com palminhas.

Como toda festa tem hora para acabar, surgiu um problema novo, antes impensável: as vítimas começaram a escassear. Pois é, quem imaginaria? O solo fértil para cultivo de parvos não conseguia mais suprir os assassinos de matéria-prima. A solução? A mais simples, claro.

Os assassinos começaram a matar uns aos outros.

Muitos subiram na traseira da carroça e deixaram Santo González, principalmente aqueles que não queriam disputar medalhas sangrentas, apenas realizar seus pequenos homicídios com garbo e beleza. Outros pagaram para ver, e viram suas faturas debitadas na conta do capeta.

Acontece.

Houve uma tentativa de armistício. Os menos insensatos marcaram a hora e o local, e realizaram um evento, que chamaram de Simpósio de Assassinos Residentes Almejando União. Ou, simplesmente, de S.A.R.A.U. Parecia o meme do Homem-Aranha: um assassino apontando para o outro.

Também não deu certo, claro. Vocês até me desculpem a negatividade da narrativa, mas sou nativo de Santo González e otimismo não é nosso forte.

Assassinatos, sim.

Os assassinos mostravam, no S.A.R.A.U., imagens fantásticas de suas realizações. O público aplaudia (sem verificação), sonhando em quando seria a sua vez de perecer nas mãos daqueles dulcíssimos algozes.

Até que um dos assassinos matou o outro, ao recebê-lo no palco para dar continuidade ao evento, e começou a carnificina. Não se sabia mais quem era quem, o palco foi aberto e as vítimas subiram para também perpetrar assassinatos, foi um badauê dos caraio, uma pandemônica folia. Entre mortos e feridos, ninguém se salvou; afinal, fugiram todos.

Diz-se por aí, pelas esquinas, de Pollo Blanco a Puerto Viejo, que alguns assassinos ainda realizam pequenos SARAUs, onde se mata ao vivo para deleite das testemunhas. Não sei.

Sei que — e isso quem me contou foi Dona Janete que recebeu o espírito de Little Bald, o clown — aquele que se achava o maior dos assassinos, depois de exterminar muitos rivais, quedou-se deprimido e buscou o oráculo. Lá, entre marafos e baforadas, recebeu a seguinte profecia na caixa do peito: “Tu serás o maior dos assassinos quando matar o maior dos assassinos” (oráculos deveriam ter revisores).

O grande assassino, então, matou-se nas escadarias do teatro municipal, sendo fracasso de público e crítica, ignorado até pelas coleirinhas na muda que cagavam sobre os jornais em suas gaiolas.

No dia seguinte, quando o sol cobriu de luz a combalida Santo González, nasceram um assassino e uma vítima, que um dia hão de se encontrar.

Nesta mesma manhã, aconteceu novamente, e neste mesmo momento, quiçá mais de uma vez.

E assim prossegue, secula seculorum, amém.

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Rodrigo Santos
Rodrigo Santos

Written by Rodrigo Santos

Escritor de São Gonçalo — RJ. Contista, romancista, poeta, roteirista. Autor de “Macumba”, “Se o medo tivesse um som”, entre outros. Evoé!

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