Lições para matar monstros

Rodrigo Santos
10 min readNov 1, 2024

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Introdução — Por que monstros?

SLIDE 1: “Medusa”, de Caravaggio

— Sejam bem-vindos ao nosso workshop de “Como matar um monstro”. Lembrando que o curso tem o apoio da Editora Serpentine, cujos títulos vocês poderão adquirir no site com um desconto bem bacana, e da Cervejaria Malteca. Não, não tem desconto na cerveja, o que é uma pena, mas prestigiando nossos parceiros vocês ajudam a manter o curso, o que por si só já é um alento nesses tempos tão sombrios em que vivemos.

O Professor acionou o controle remoto, e a tela se iluminou com o slide. O auditório era mediano, um pouco maior que uma sala normal da universidade, e mais da metade de seus assentos estavam vazios, porém os poucos alunos inscritos no curso inclinaram os corpos para frente e começaram a rabiscar alguma coisa em seus fichários.

— Monstros sempre existiram. O próprio nome “monstro” é um grande guarda-chuva semântico utilizado pela humanidade desde tempos imemoriais para explicar seres que agiam de discordância de suas regras sociais. Assassinos, canibais, feiticeiros. Mulheres chamadas de bruxa e queimadas nas fogueiras da inquisição, pedófilos empalados por cabos de vassoura em celas escuras e úmidas de uma prisão no interior. Todos monstros. Em tempos de galopante distopia como os nossos, brotam das páginas dos jornais como erva daninha entre paralelepípedos. Mas estes, deixemo-los à polícia e às autoridades competentes. Ou incompetentes. — o Professor riu para dentro, como um soluço, como se sua piada tivesse alguma graça. — O que me interessa aqui é ensinar a vocês como matar outro tipo de monstro, muito comum também em tempos como os nossos. Esta zona cinza entre um aeon e outro esgarça o tecido já puído da realidade, e abre as portas entre os mundos.

No momento em que a mão tocou o ombro do rapaz, os dedos de começaram a se expandir. Como um vídeo de algum canal de natureza, mostrando o movimento e o crescimento dos ramos de algum arbusto, só que sem time-lapse. A rua estava escura, e os dois caminhavam para o ponto de ônibus. Começou a cair uma garoa fininha, apenas para dar brilho às roupas e cabelos.

O rapaz virou, ainda sem perceber o que estava acontecendo. Os dedos do homem começavam a cobrir a sua pele como hera. Quando se beijaram, foi como se a língua de seu crush naquela noite se transformasse em um tubérculo dentro de sua boa, uma mandioca que crescesse — não pra dentro da terra, mas dentro de si.

Tentou falar, mas o que agora era um galho descia por sua garganta. A chuva engrossou. Não chegou a morrer sufocado, os ramos que saíam dos dedos o envolveram e entraram em sua carne, alcançando seu coração. Não demorou para que seu diafragma se rompesse, revelando galhos e folhas molhadas de sangue. De seus olhos irromperam duas flores, semelhantes a hibiscos.

O homem, já também transformado em híbrido vegetal, chupava o sangue pelas veias que pulsavam sobre a pele amadeirada, até que finalmente absorveu todo o jovem.

Quando se retirou, cambaleando como se a bebida fizesse efeito, deixou no chão apenas uma flor de vermelho escuro, cortada no caule, sob a luz do único poste, e molhada da chuva, que agora cessava de forma abrupta.

Lição I — Monstros são seres solitários

SLIDE 2: Klaus Kinski em “Nosferatu, o vampiro” (1922)

— De acordo com os estudos do Dr. Jerome Morton, um grande pesquisador do sobrenatural, monstros geralmente são solitários. Exilados de suas dimensões, voluntariamente ou não, não conseguem se encaixar no ethos de nossa realidade, e raramente interagem socialmente a não ser para satisfazerem suas necessidades mais urgentes, geralmente fome. Aliás, recomendo a vocês a obra do Dr. Morton. Ele se baseia em um livro antigo, que fala sobre a sobreposição de realidades, chamadas de estratos. Oi? Não, não, você não acha esse livro, foi escrito no século XV, e não se tem vestígio dele desde o século XVIII, eu acho. Não sei como o Dr. Morton consegue, vai entender. Mas o trabalho dele é muito consistente. Como eu ia dizendo, o monstro é um ser solitário. Ele cria seu próprio ambiente, e deixa pistas. Mas sempre sozinho. Isso torna mais fácil a investigação, e a captura.

“Vamos abrir na parte terceira, que fala das leis morais; capítulo X, sobre a Lei de Liberdade. Leiam a partir da 843, sobre livre arbítrio. Vinte minutos tá bom? A gente já volta a falar sobre isso.”

Sábado era noite de estudar o Livro dos Espíritos em seu grupo da Federação. As crianças estavam na Evangelização, junto com a mãe, então Antunes saiu para fumar um cigarro.

Lá fora, olhando pra rua, enquanto tragava fundo, ouviu o rapaz se aproximar.

“Opa. Complicado, né?”

“O quê?” — respondeu Antunes.

“Cigarro.” — ele apontou. “Na igreja eu me sentia oprimido por fumar. Aqui é mais tranquilo, mais ainda assim vejo um ou outro olhando de cara feia”.

“Ahn…” — Antunes olhou o garoto de cima a baixo. Não devia ter 25 anos, ainda. Negro como ele, cabelos raspados, sotaque diferente. Pernambucano? — “Primeira vez aqui na Federação?”

“Sim, sim. Eu frequentava a mocidade lá no Ceará, mas aí vim pro Rio e fiquei meio perdido, retomando agora.”

Antunes puxou o cigarro. A fumaça fez coceira em seus pulmões, um arrepio fino e frio subiu por sua coluna.

“Você está longe de casa, hein?”

“Exército. Eles mandam a gente pra onde bem querem. Meu nome é Marcelo, prazer.”

“Antunes aqui. Prazer é todo meu”.

Os homens apertaram as mãos e terminaram de fumar em silêncio, voltando para dentro. Mais tarde, quando terminou a sessão, Antunes voltava pra casa, as crianças dormindo no banco de trás, ele colocou a mão na perna da esposa sentada a seu lado.

“Gente boa, aquele menino novo, né?”

“Qual menino, Binho?”

“Um paraíba- opa, paraíba não, nordestino. Desculpa.”

“Vi não.” — olhou pela janela. — “Viu que esses dias queimaram um morador de rua aqui no Barreto? Misericórdia de gente ruim…”

“Monstros, Cristina. Todos monstros.” — e sorriu.

Lição II — Sinestesia monstruosa: cheiro, gostos peculiares

SLIDE 3: Pokemón Koffing

Assim que o slide apareceu na tela, o Professor abriu um sorriso.

— Gostaram do pokemon, né? Mas ele representa bem o que iremos falar. Alguns sinais são muito peculiares para a nossa identificação definitiva, mas em suma: o monstro cheira mal. As alterações fisiológicas decorrentes da adaptação do corpo físico adquirido nesta nossa dimensão acaba gerando disfunções, ou melhor, funções diferentes das que consideramos padrão. Além de uma aparência quase sempre repugnante, o monstro exala cheiros característicos, quase todos no espectro da podridão. Muitas vezes, a carne que encerra o monstro aqui se putrefaz lentamente, não conseguindo gerar vida, e quando ele traz a sua própria carcaça, ainda é um pouco pior. Isso, inclusive, faz com que nosso monstro tenha gostos peculiares. Paladar, aroma, estética: tudo está invertido ou pervertido em nosso monstrinho.

O Professor olhou o desenho exposto no slide. Era uma bola roxa com olhos, boca sorridente com apenas dois dentes e algumas verrugas parecidas com crateras, de onde saíam feixes de fumaça tóxica. Apontou com o laser para ele e sorriu para os alunos.

As crianças jogavam bola no gramado adjacente à churrasqueira, enquanto Antunes atravessava alguns camarões em palitos alongados e vestia um avental que dizia “beije o churrasqueiro”.

“Acho que os camarões ficarão prontos antes da picanha”, ele disse.

“Então não coloca agora, né, amor?”

“Não vejo problema nenhum, adoro camarão! Aliás, quero agradecer a vocês dois pelo convite, e pela acolhida”.

Na mesa de madeira, Marcelo enchia seu copo e o de Dona Cristina com mais uma cerveja.

“Que nada, meu amigo. Sabemos como é estar longe de casa. Ainda bem que você não estava de serviço, né? Fazemos esse churrasquinho uma vez por mês, pra desopilar. A cerveja está a seu agrado?”

“Tenho medo até que me caiam os dentes! Acostumado a beber cerveja barata, vou até passar mal”. Todos riram.

Enquanto Marcelo contava a sua história, Antunes vigiava a carne. O rapaz conversava animadamente com Dona Cristina e elogiava a sua pele, até que uma das crianças se machucou na brincadeira e ela teve que dar suporte.

“Desculpa o ponto, eu sei que a maioria prefere um pouco crua por dentro, mas aqui em casa gostamos dela sem sangue”, disse Antunes quando serviu a picanha.

“Sem problemas. Rapaz, que cheiro é esse? Você deve ser o único cara que fica na churrasqueira e não sai defumado!”

Marcelo pegou na mão que Antunes segurava a faca. Os dois homens se entreolharam.

“É Lancaster. Perfume de velho. Como sou velho, me permito.”

Antunes sentiu pinicar a pele onde a mão de Marcelo estava pousada.

“Velho nada, rapaz. Está ótimo.”

Antunes retirou a mão enquanto dona Cristina vinha com o caçula chorando em seu colo.

Lição III — Isca

SLIDE 4: A atriz Fay Wray acorrentada no topo do Empire State Building, frame do filme King Kong (1933)

— Monstros são suscetíveis. Não submetidos a nossas normas sociais, são guiados apenas pela satisfação de seus desejos prementes. O uso de uma isca é bastante eficaz nesse caso, uma forma de atrair o monstro para fora de sua reclusão e torná-lo um alvo mais fácil. Muitos tentam matar o monstro em seu covil, mas este é um erro pueril. Dentro de suas tocas, do lugar em que se estabelecem, eles são mais fortes. É preciso trazê-los para fora, e a forma mais eficaz de se fazer isso é usando uma isca. Fundamental identificar o tipo mais adequado de isca, e isso pode ser feito através da observação de seus hábitos.

O carro estava parado na frente do prédio.

“Puxa, seu Antunes, obrigado mesmo pelo convite, me senti em casa.”

“Que nada, meu caro. E para com essa palhaçada de ‘seu’, pode me chamar de Antunes mesmo.”

“Você e Dona Cristina são gente muito boa. E, se me permite, parabéns, viu? Sua esposa é muito bonita. Parece uma menina!”

Antunes riu, e uma sombra atravessou o seu sorriso.

“Eu nem sei como posso retribuir a gentileza de vocês.”

Marcelo colocou a mão na coxa de Antunes. Foi como se pequenas descargas elétricas atravessassem a calça jeans. O homem então ligou novamente o carro, para desfazer a tensão.

“Nada, não precisa. Semana que vem a gente bebe uma cerveja na saída da reunião, eu deixo você pagar.”

Marcelo sacudiu a cabeça, meio sem graça.

“Tá bom então. Mas não sei se vou ter grana para pagar essas cervejas caras que você curte não, hein?”

“Relaxa, a gente bebe qualquer uma. Eu faço esse esforço.”

Mais um breve silêncio desconfortável, e Marcelo saiu do carro.

“Até semana que vem então! Qualquer coisa, me liga.”

Antunes pegou o caminho mais longo de volta para a sua casa. Seus olhos estavam esverdeados, e pequenos ramos começavam a brotar da pele de seu antebraço. Não podia chegar em casa assim, esperava apenas poder dormir. Não tinha mais forças aquela noite.

Lição IV — Monstros têm fraquezas

SLIDE 5: O quadro pintado com a silhueta de Dorian Gray

— O calcanhar de Aquiles. O reflexo da Medusa. O olho único do Polifemo, o sol para o Conde Drácula, a bala de prata para o licantropo. Todos os monstros possuem um ponto fraco. Sim, eu sei que Aquiles não era um monstro, mas a ideia é a mesma. Todo sistema é entrópico, carrega em si o seu próprio elemento de destruição. Mesmo o sol que nos ilumina e dá a vida está em processo de extinção. Um caçador de monstros deve identificar essa fraqueza, esse é o modo mais eficaz de matá-lo. Como falei anteriormente, a transição entre planos pode proporcionar ao monstro qualidades superiores às nossas, meros seres humanos.

Na cama, Antunes definhava. Sua pele se escurecia e tomava a consistência de casca de árvore, velha e seca; os olhos acinzentados e vagos, enquanto Cristina o cavalgava. Ela ria e dava tapas em seu rosto.

“Isso, não dorme não. Cresce mais- ahn… Assim. Cresce dentro de mim que eu estou quase… Ah…”

Os braços de Antunes abertos como um crucifixo, amarrados na lateral da cama, as algemas de pano cruzadas.

Enquanto rebolava e acolhia a ligeira aspereza da tora de madeira que agora alargava seu canal vaginal, Cristina sentia a sua pele se esticando, seus mamilos subindo e mirando o horizonte. Antunes sentia toda sua a força vital se esvaindo para dentro da mulher, mal conseguia respirar.

Cristina então começou a rir. Um riso alto, estridente, que logo se transformou em uma gargalhada. As crianças dormiam profundamente no outro quarto, com a televisão ligada no canal de desenhos.

As últimas raízes embranquecidas de seus cabelos se escureciam, e suas unhas quase brilhavam. Ela se levantou com a seiva esverdeada escorrendo pelo meio de suas pernas e foi para o banheiro, deixando Antunes seco na cama, balançando as firmes nádegas enquanto prendia os cabelos em um rabo de cavalo. Antunes virou para o lado, e seus olhos se alagaram com uma seiva branca e leitosa.

Epílogo — Monstros não são humanos

SLIDE 6: A capa do livro de Robert Louis Stevenson, “Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde” (1886)

— Então é isso. Espero que vocês tenham gostado da aula, e lembrem-se: monstros não são humanos. Não fraquejem antes do golpe final. Cabe a cada um de vocês agora essa missão, a de eliminar essas criaturas horrendas de nossa realidade. Tenho certeza de que muitos os chamaram de loucos quando vocês se inscreveram para esse curso, mas acreditem: monstros existem, e estão por aí, matando pessoas. Só o conhecimento e a coragem necessária podem por fim a suas atrocidades. Agradeço a todos pela atenção, e boa sorte em sua caçada.

O Professor desligou o projetor e juntou os seus papeis em uma pasta, enquanto os alunos se levantavam e se dirigiam para a saída, ainda letárgicos pela aula, tomados por um misto de descrença e apreensão pela realidade que lhes foi apresentada.

Quando o Professor desceu as escadas, apenas um jovem o esperava. Devia ter uns 20 anos, e vestia uma camisa preta com a estampa de uma banda de heavy metal.

— Mas Professor Antunes… Eu tenho uma dúvida. E se o monstro não seguir nenhum desses padrões?

O Professor Antunes riu, e colocou a mão em seu ombro, estendendo os dedos para a sua nuca.

— Bom… Esses monstros, geralmente você não mata. São eles que matam você.

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Rodrigo Santos
Rodrigo Santos

Written by Rodrigo Santos

Escritor de São Gonçalo — RJ. Contista, romancista, poeta, roteirista. Autor de “Macumba”, “Se o medo tivesse um som”, entre outros. Evoé!

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