Evillyn

Rodrigo Santos
3 min readJul 25, 2020

--

Um único raio de sol entrava pela janela lateral da sala da Madre Superiora, iluminando partículas de poeira que se levantavam preguiçosamente dos móveis antigos. Por detrás da cadeira da diretora do Colégio Sagrado Coração de Maria, um horrendo cristo crucificado em tamanho grande, e o calendário das Edições Paulinas marcando que era 26 de outubro de 1989, dia de São Evaristo.

- Se-nho-ri-ta Evillyn… Eu rezo todo dia pela misericórdia divina para que essa cena não se repita. E aqui está a senhorita mais uma vez.

Madre Aurora gira uma caneta em sua mão direita como se fosse um cigarro, respirando pesadamente em seu hábito marrom. Na mão esquerda, um terço. À sua frente, encolhida, a menina Evillyn dobra a pontinha da saia quadriculada de pregas para não ter que olhar para a Madre. Cabelos embolados, trança desfeita, um hematoma sob o olho esquerdo e um filete de sangue seco descendo pela narina.

Evillyn não olha pra cima, nem mesmo quando a Madre Aurora se levanta — com alguma dificuldade — largando a caneta e enrolando mais o terço na mão, enquanto contorna a mesa.

- Quando a senhorita cruzou os portões deste internato eu percebi que teríamos um problema. É difícil aceitarmos o seu… o seu tipo de gente aqui, sabia?

A velha passa para trás da menina e se inclina, cheirando-a sobre o ombro.

- Eu não sei o que é… Mas eu senti o mal em você desde o primeiro dia, criança.

Em um rompante, Evillyn levanta a cabeça.

- Eu não sou o mal! Foi aquela sonsa da Maria Clara-

- Silêncio! — a despeito de sua idade, Madre Aurora é rápida para puxar a orelha da menina. — Mas que garota insolente! Você só responde quando eu perguntar, entendeu?

Evillyn amarra a cara, mas o puxão de orelha persiste. A cara amarrada vira cara de dor, e ela assente com a cabeça. Madre Aurora se encosta na mesa, quase se sentando de frente para a menina. Com uma das mãos, mexe no terço.

- A irmã Paula disse que você arrancou um chu-ma-ço de cabelos da Maria Clara, verdade?

- A Irmã Paula é uma fofoque-

Madre Aurora estreita os olhos, comprime os lábios e a frase morre na boca da menina.

- E por que a senhorita fez isso?

- Ela estava me zoando. — Evillyn responde quase sussurrando.

- Não ouvi, senhorita Evillyn. Não ouvi!

- Ela estava me zoando!

Madre Aurora se inclina, aproximando o rosto.

- E qual o motivo desta… desta… “zoação”?

Evillyn abaixa a cabeça e dobra a pontinha da saia. Madre Aurora avança e levanta a manga da blusa da menina, com violência. No braço de Evillyn, cicatrizes desalinhadas como lagartas em sua pela negra se destacam; as cicatrizes mais antigas, esbranquiçadas, em contraste com as cicatrizes roseadas.

- É por causa disso?

Evillyn puxa o braço com força, tapa o rosto com as mãos e começa a chorar, em soluços. Madre Aurora arrodeia novamente a mesa, enquanto fala.

- Senhorita Evillyn, se-nho-ri-ta Evillyn. — a diretora se deixa desabar na cadeira e apoia os cotovelos na mesa, soltando ruidosamente o ar dos pulmões. — É sabido que as pessoas do seu… povo… Trazem uma maldição ancestral, demônios que vêm de muito longe. Já estava difícil antes fazê-la se adequar às boas práticas cristãs… E agora você se mutila.

Evillyn, com o rosto nas mãos, soluça forte e balbucia alguma coisa. Madre Aurora se inclina para frente e franze o cenho.

- O que disse?

- Vocês não entendem… — os soluços ficam mais fortes.

- Então explique, senhorita Evillyn. — a voz da Madre Aurora aumenta em crescendo. — Explique de uma vez por todas antes que eu a expulse daqui!

Evillyn tira as mãos do rosto, para de soluçar e arregala os olhos. Mete a mão no bolso frontal da blusa branca de linho e tira uma lâmina de apontador. Vira o pulso direito pra cima, encosta a lâmina afiada e faz um corte no sentido do pulso para o cotovelo.

- Eu me corto é pra luz sair.

Conforme a lâmina corre na pele, uma luz branca sai pela brecha da carne, em vez de sangue. A luz cresce e toma toda a sala, ofuscando o olhar de terror de Madre Aurora.

--

--

Rodrigo Santos
Rodrigo Santos

Written by Rodrigo Santos

Escritor de São Gonçalo — RJ. Contista, romancista, poeta, roteirista. Autor de “Macumba”, “Se o medo tivesse um som”, entre outros. Evoé!

No responses yet