Dois contra um em Vladivostok

Rodrigo Santos
11 min readMar 4, 2024

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O sonho era sempre o mesmo. O Homem ia costurando por entre as vielas do bairro pobre, até encontrar uma casa de madeira. Lá dentro, estava Solosha, com sua enorme barriga prestes a gerar mais um fruto daquela imundície.

“Vamos” — diz o Homem, pegando-a a pelo braço nu. “Você não pode ter essa criança aqui”.

Em algumas noites, Solosha seguia sem reclamar, em outras se rebelava, esperneava, mas de alguma maneira ou de outra sempre iam parar no alto da terceira colina, quando o homem finalmente virava para ela e dizia:

- Você não podia dar a luz a essa criança lá, e nem em lugar algum. — E com um punhal cortava a jugular de Solosha, para deixá-la sangrando sobre a neve que já começava a cair, e a última coisa que ela via era o Homem levando a criança.

Algumas maldições você herda, outras você atrai. O nariz adunco e desproporcional ao rosto do tronco de sua família que emigrou da Toscana, a ausência de unha no dedo mínimo do pé direito e a propensão à gota, tudo isso você não escolheu, recebeu em um pacote fechado de serviços com o seu nome, ainda na maternidade.

O homúnculo sorrindo e segurando uma calota de carro ao pé de sua cama, não.

Solosha segurava o bule de chá quando sentiu a primeira pontada de dor abaixo de seu umbigo. A criatura que carregava dentro de si decidira não esperar mais.

Dobrou os joelhos de dor no chão do único cômodo do casebre onde morava sozinha. O calor das brasas do fogão rústico avermelhou suas faces, e ela não saberia dizer se a lágrima que escorreu gelada em seu rosto foi de dor ou pela fumaça.

Era cedo ainda, não tinha seis meses desde que fora violada pelo estranho. Ela lembrava da barba crespa e desgrenhada a roçar em seu pescoço, e da língua grossa e áspera em sua pele alva. A dor que sentia agora era comparável ao rude ato perpetrado contra sua honra e sua carne imaculada. O estranho não se parecia com o Homem do sonho; ele era grande, e Solosha sentiu-se rasgar por dentro.

Na delegacia, suas roupas humildes quase a fizeram ser presa, mas foi apenas ridicularizada pelo Comissário. A miséria da vida que levava era tomada por promíscua e criminosa por parte daqueles que conseguiam manter as narinas para fora do chorume da sociedade, e as leis eram apenas indicações vagas de civilidade naquele canto gelado e sombrio do mundo. Solosha voltou para casa, e chorou. Chorou durante seis meses por hospedar a semente imunda de seu algoz, chorou por não saber como alimentar aquela criança que em breve colocaria no mundo e precisaria de seu amor.

A criança agora que sorria para ela, no chão de terra batida da cozinha, próximo às achas ainda em brasa, entre sangue e pedaços de seu interior. Seu filho.

E filho dele.

Krieger acordou antes que o sol se fizesse parto por entre as brumas geladas. Enfiou os pés em suas botas forradas de lã, e tomou a precaução de coçar os olhos antes de botar as luvas. O inverno sempre fora rigoroso em Vladivostok, mas sua força cruel de velho cossaco este ano se fazia palpável nas cutículas e asas do nariz.

Devidamente paramentado para a cerimônia da vida na neve, ele cruzou a galeria onde repousavam os troféus de caça de seu pai. Era uma parte da casa que nunca visitava, exceto quando recebia a visita de damas (o que cada vez era mais raro) para tentar impressioná-las com os restos de animais empalhados que haviam perecido sob as barbas do velho Ives, também chamado de “Pavel” por seus companheiros devido a sua estatura reduzida. Pequeno, sim, porém troncudo, e preferia caçar com armadilhas e machetes, enquanto Krieger sempre optava pela distante assepsia proporcionada pelas armas de fogo.

Isso hoje não seria uma opção, infelizmente.

Abriu a caixa de madeira entalhada que seu pai escondia sob a foto do Czar. Forrada de veludo, guardava outra caixa dentro, mais rústica. Dentro dela, enrolado em um pano que quase se desfez nos dedos do homem atarracado, o punhal. A velha lâmina ainda trazia manchas de sangue pisado, e Krieger murmurou a antiga oração em forma de mantra.

Tinha crescido ouvindo as histórias de conquista, de fome, de desespero e guerra. Mas a que mais o assustava era a da missão. “Um dia, meu filho, este punhal fará justiça, por suas mãos”. Seu pai estava velho, mas no leito de morte fez questão de reforçar a mensagem: ele, Krieger, não deveria hesitar quando chegasse a hora.

A hora havia chegado.

“Então você… você realmente o conheceu?”

“Quem, o nazareno? Claro” — ela falou, com nutella dentro e fora da boca.

“E como ele era?”

“Como era o quê, Chura?”

“Assim… Falar com ele, ouvir sua voz…”

Ela deu uma gargalhada que lhe fechou os olhos.

“Era um meninão mimado, que nem você. Vocês meninos só crescem em tamanho.”

“Mas ele é o filho de deus!”

“Não falei? Vocês acham que um ser poderoso, que criou tudo, viria à Terra como… um homem?” — E deu outra gargalhada.

“Então deus é mulher? Como vocês o chamavam?”

“Tínhamos uma palavra neutra, algo como ISTO. Mas nós não o chamávamos. Esse negócio de deuses é estranho… A gente só torcia para que ele não se metesse na nossa vida e não atrapalhasse as colheitas e as gestações, só isso.”

“E em que esse ´isto´ se difere da besta da qual você vem impedir o nascimento?”

“E quando eu disse isso? Quando eu disse isso sobre Isto?” — e riu, piscando os olhos que pareciam de boneca. “Vamos, a terra suspira, está na hora”.

“Mamãe… Por que temos que fugir?”

Era estranho. Por maior que fosse o amor que Solosha sentia por aquela criatura, o primeiro impulso era de asco. Havia duas semanas que saíra de seu ventre, e já se equilibrava em suas duas perninhas gordas. E falava.

“O que é isso? Para que serve?” — eram suas frases preferidas. Tudo queria saber, tudo tocava e algumas coisas colocava na boca, já com alguns dentes. Solosha não tinha forças para argumentar, apenas amamentava e fugia.

A primeira noite havia sido pior. Quando Solosha envolveu o bebê que sorria em seus braços, ele procurou o seu peito com voracidade. Nenhuma camisola ainda havia se manchado de leite, e a moça se sentiu impotente para alimentar seu rebento — até que uma boca pequena com a sucção de ventosa retirou de seu ser a seiva preciosa. O leite jorrava como se estivesse armazenado há dias para encher a boca do bebê, ainda que na véspera os seios miúdos de Solosha não enchessem sequer o sutiã.

Quando a criança parou de sugar, ela se sentia exaurida, e emitiu um gemido de dor e tristeza.

“Não chore, mamochka.” — As palavras saíram claras como se pronunciadas por um orador de praça pública. — “Menya zovut Grigor (eu me chamo Grigor). Vai dar tudo certo”.

Quando a caminhonete beirava o cais onde repousavam os navios de guerra da frota do Pacífico, o sol começava timidamente a dar suas caras. Na ponte estaiada (“as maiores do mundo”, diziam os jornais quando foram inauguradas) que dava para a Ilha Russky, pessoas normais habitavam seus veículos em direção a mais um dia de trabalho, esperando alcançar a tão sonhada produtividade, palavra da moda que viera junto com a abertura capitalista e a necessidade de sobreviver a seus vizinhos.

“Ah, Mãe Rússia, o que te tornaste!”, pensou Krieger, com um muxoxo.

Sob o casaco, apalpou o volume envolto em velino, esperando que seu dia também fosse produtivo. De acordo com seu pai, aquele punhal tinha sido usado para esfaquear o Grande Mago, o Devasso, e por sua lâmina a vida tinha se esvaído. Não o fogo, não a água, mas o metal. O metal ancestral tirado das montanhas Altai.

Seguiu para o interior, se afastando da costa, na mesma direção onde acontecera o acidente automobilístico.

Até a terceira colina.

O carro havia girado duas vezes e meia antes de repousar de rodas para cima. Após um breve momento de inconsciência, Aleksander abriu os olhos. A menina estava em pé, do lado de fora.

— Vamos, Chura. Não temos muito tempo.

Um corte diagonal rasgava sua bochecha, e seu braço direito parecia… sei lá, estranho, em um ângulo diferente do normal.

Aleksander soltou o cinto de segurança e caiu deitado no teto do carro. A dor em sua perna quase o fez gritar — como na manhã em que tinha encontrado a menina sentada na sua sala, enfiando dois dedos no pote de nutella e colocando na boca.

Mas não gritou. Pela janela quebrada, se arrastou pelo chão de neve e terra, o pesado casaco de couro arrastando o vidro sem que se cortasse.

— Teremos que caminhar até a cabana, agora. Você não sabe conduzir, Chura? Já vi carroceiros melhores.

O braço já estava no lugar, e o rasgo em seu rosto — por onde antes Aleksander conseguia ver alguns dentes através — já era uma lagarta rubra de cicatriz.

— Me responde uma coisa?

Ele bateu a neve da roupa, e tentou acompanhar o passo da menina com sua perna claudicante.

— Claro. Mas você tem que andar rápido. A gente não vai chegar a tempo assim. — E piscou, com seus cílios de boneca.

— Você não… Não morre?

— Não.

— Por quê?

— Não sei. Apenas não morro. Não é o máximo? — E bateu palmas, rindo e piscando os olhos.

Aleksander mancava. Olhou para a perna esquerda, e viu a calça rasgada, com as partes já empapadas de sangue.

— Sempre foi assim?

— Desde que eu me lembre. E sempre tem algo que eu tenho que fazer. Talvez isso seja um bom sinal, né?

O homem parou.

— Vamos, Chura! Deixa de ser mole!

Ela acelerou o passo. Aleksander suspirou, e seguiu, mancando.

A porta bateu com tanta violência que quase pulou das dobradiças. O sol refletia na neve e Solosha colocava as costas da mão na frente dos olhos para tentar ver alguma coisa. Desenhou-se na moldura da porta a silhueta de um homem atarracado e robusto, como um jovem iaque. Quando ele deu um passo à frente, ela pode ver a sua barba encanecida, a brotar sob um nariz redondo como o resto do rosto, e vermelho. Era só o que saía do capuz de pelos de arminho.

— Soloshkaya.

— Você… Quem é você? Fora daqui!

— Mama… — a voz firme traía a criança. Os dedos do pequeno Grigor envolveram seu antebraço, o que a fez deslocar o corpo para o lado como se pudesse escondê-lo do invasor.

— Solosha, a gente precisa sair daqui.

— Não! — teria sido um grito, em sua cabeça, mas saiu como um fio fraco de lamparina no final de querosene. — Deixe-nos em paz, estranho! Meu filho e eu-

— Ele não é apenas teu filho, Solosha. E vocês precisam vir comigo.

— Não! Ele é meu!

O pequeno Grigor saiu detrás da mãe.

— Mama. Krieger. Krieger é seu nome, não é?

Krieger se assustou, e desenrolou o punhal do velino que o ocultava.

— Filho de Lyubov e Ivan? — A criança então se virou para a mãe. — Temos que ir com ele, Mama.

Krieger achou a cabana na terceira colina. O homúnculo disse que ela estaria lá, e lhe disse o seu nome. Chamou, e não obteve resposta. Chamou mais uma vez, e viu o estranho casal subindo a estrada, o homem mancando. Decidiu entrar da maneira menos sutil.

Quando arrombou a porta, a mulher se protegeu do sol às suas costas. Já era noite, mas o dia demorava a terminar naquela região. Imediatamente, em seu instinto maternal, ela tentou proteger a criança, jogando-a para trás de si.

Uma criança que andava. Quando começou a falar, Krieger teve que se esforçar para não quedar de joelhos. Aquela criança tinha dias, apenas.

Mas era muito mais do que uma criança.

Seu pai estava certo. O punhal finalmente cumpriria a sua missão.

Ele tinha voltado.

— Vamos, Chura! Vê? Ele já está aqui!

A menina subiu correndo o que restava de espaço entre a estrada e a cabana. A porta, dependurada em suas dobradiças, não oferecia resistência, e ela entrou.

Sgroya! — Gritou Solosha.

Sem hesitar, Krieger se virou e golpeou horizontalmente o pescoço da menina com o punhal.

Com força.

Com ódio.

A menina levou as duas mãos ao pescoço, tentando segurar o sangue.

Por alguns segundos, o chão suspirou mais uma vez. O pequeno Grigor correu para os fundos da cabana.

A menina riu. Não sorriu, apenas. Riu mesmo. Uma risada que gradualmente se tornou uma gargalhada molhada, enquanto o sangue brotava por entre os dedos que comprimiam a garganta.

— Você não afiou o punhal, não é, Pavel? — As palavras saíam em goles, como vodka barata.

Krieger olhou para a arma em sua mão esquerda, incrédulo.

Aleksander então entrou na cabana.

— Atira nele, Chura!

Ao ouvir o seu apelido de infância, Aleksander puxou a pistola que a menina tinha dado a ele e atirou.

Mas Aleksander nunca fora um guerreiro.

O tiro pegou no ombro de Solosha, jogando o seu corpo para trás. A mulher ainda olhou assustada, e caiu.

— Mama! — A criança gritou.

— Ah, aí está. O pequeno Grigor. Vê, Chura? Eu estava certa! — A menina bateu palmas, em êxtase. — A mãe dele me chamou de Sgroya, você acredita?

Grigor olhou fixamente para a menina, que já havia tirado as mãos do pescoço, e depois para Aleksander. Ele se lembrava dela. De seu sorriso, e dos olhos de boneca.

Dos tiros, do fogo, da água.

E do punhal.

— Krieger, é agora!

Solosha, caída no chão e sangrando, viu o homem atarracado — o Homem do sonho — avançar para a menina.

Krieger lembrou de seu pai, de seu esmero em sacrificar as presas na armadilha. “Não é piedade, moy syn, é segurança. O animal que você não mata, mata você”. O punhal podia não cortar, mas ainda perfurava.

Avançou na direção da menina franzina, com a camisa do Scorpions, e atacou. O primeiro golpe foi dado na base do pescoço, quando o punhal saiu o sangue espirrou para todos os lados, inclusive na cara de Aleksander.

Krieger não parou de golpear. Estocava a lâmina cega onde seu braço curto alcançava: tórax, abdômen, ombros. A menina olhava, estupefata, enquanto sentia suas forças escaparem.

Aleksander apontava a arma, mas não conseguia atirar. Suas mãos tremiam tanto quanto seus lábios, e o cheiro de sangue fresco embrulhava seu estômago.

A menina caiu no chão, inerte. O sangue molhava a terra da cabana, e se misturava aos flocos de neve que entravam pela porta arreganhada.

Krieger pegou a arma das mãos de Aleksander, que soluçava, e atirou em sua cabeça, sem cerimônia.

— Você está bem? — Ele perguntou para Solosha.

— Dói… dói muito.

— Vamos tirar vocês daqui.

Com alguma dificuldade, ele levantou a moça.

— Krieger.

Olhou então para a criança.

Spasibo.

Krieger se ajoelhou, e olhou em seus olhos.

— Dediquei a minha vida a essa missão, tovarishch, legada por meu pai. Espero que tenha valido a pena.

O menino sorriu, e a sombra que passou pelos seus olhos fez um arrepio subir do cóccix até o pescoço do homem atarracado.

— Desta vez farei eu mesmo o serviço, meu drug. Longa vida ao Império Russo.

— Longa vida ao Império Russo.

E saíram da cabana, na neve, em direção à caminhonete de Krieger, a mulher apoiada nos ombros do Homem e a criança pisando na neve fofa.

FIM

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Rodrigo Santos
Rodrigo Santos

Written by Rodrigo Santos

Escritor de São Gonçalo — RJ. Contista, romancista, poeta, roteirista. Autor de “Macumba”, “Se o medo tivesse um som”, entre outros. Evoé!

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