Disritmia
“Difícil é matar o primeiro, Leozinho. A gente dorme e acorda vendo a cara do sujeito implorando pra viver, lembra? Depois é igual matar galinha, cara, e você sabe disso”.
Nado entrou no quarto à meia-luz e Cecília já cochilava, de barriga pra cima e a cabeça jogada para trás. Então se debruçou sobre o rosto dela, e eu podia sentir o ar quente que saía daquela boca arreganhada. Ele deu aquele sorriso de novo e afastou os dentes dela com a língua.
Cecília abriu os olhos com espanto, mas foi por pouco tempo. Logo o tango de saliva e lábios se tornava um jazz.
- Você bebeu? — ela perguntou, ainda um pouco sobressaltada.
- Um pouco… — a voz de Nado era uma oitava abaixo da minha, como se saísse de algum lugar atrás da garganta. Ele afastou os seus joelhos e afundou a cabeça entre suas pernas.
De algum lugar, eu gritava. Gritava para que ele parasse, para que saíssemos logo dali. Era doloroso assistir a Nado enquanto ele matava, mas isso era muito pior. Eu sentia o cheiro e o gosto do sexo de Cecília, que se contorcia em espasmos como uma epilética enquanto Nado a lambia por dentro. Ela puxava os cabelos e passava as mãos nos ombros, nos braços.
- Amor, o que é isso, é sangue? — Cecília se apoiou nos cotovelos, olhando com espanto para o braço ferido. — Tem na sua testa também…
Nado subiu o corpo e penetrou-a com um movimento brusco.
“Nado, não!” — eu gritei, e meu grito se somou ao uivo de dor de Cecília.
Ele investia com violência, a segurando pelo ombros e arremetendo com cada vez mais força. Eu sentia as virilhas se unindo com força, com quentura… e nojo.
“O que você está fazendo!”
“Estou cuidando de você, Leozinho. Você não sabe se cuidar sozinho, precisa de mim.”
“Deixa ela em paz! Deixa ela em paz!”
Mas era inútil. Cecília tentava se desvencilhar, chorava, e ele passava a língua em seu rosto, como um animal que lambe sua cria. Mesmo nauseado e sem poder tomar qualquer ação, eu sentia que o prazer começava a chegar ao ápice. Então as mãos de Nado fugiram dos ombros para o pescoço de Cecília e o envolveram, como uma vez se apertaram no pescoço do cão chamado Maradona.
Eu gritei mais uma vez, Nado apenas sorriu.
Cecília estava linda, o vestido branco perfeitamente adaptado às suas formas generosas. O pastor que ministrou o casamento gritava e lançava perdigotos a alguns centímetros de minha face, mas ela merecia, merecia muito mais. Merecia até mais do que nós dois.
Depois da festa, pegamos um carro e fomos para o hotel do centro da cidade onde consumaríamos a nossa lua de mel antes de viajarmos, na manhã seguinte, para Campos do Jordão. Segui o protocolo — não sem alguma dificuldade — cruzando o portal com Cecília em meus braços. Seus olhos brilhavam.
- Eu te amo, Léo.
- Eu também.
Ficamos em silêncio por um longo e constrangedor momento, até que ela caiu na gargalhada.
- Olha só nós dois… Até sabemos o que fazer, mas não como se faz.
Ela me abraçou, e nos beijamos. A urgência de Cecília em enfiar a língua molhada em minha boca me deixou ligeiramente nauseado, como se tivesse abocanhado um peixinho dourado vivo. Instintivamente, agarrei-a pelos braços e a arranquei da minha cara.
- Mas o que foi? É o nosso momento…
- Desculpa, Cecília, eu… eu… eu estou um pouco nervoso.
- É normal, meu amor… Afinal, é a nossa primeira noite… nossa primeira vez… — e investiu novamente contra meu corpo, mãos e peitos e boca.
- Ceci… Calma…
Sem aviso, sua expressão se transformou em uma máscara distorcida, e logo um choro barulhento e molhado se seguiu.
- Sou eu, não é? Eu sempre achei estranho que você não tentasse avançar o sinal, é algum problema comigo, só pode ser… — ela cuspia as palavras entre soluços e catarro.
- Não, meu amor… Olha… Eu sempre respeitei a sua vontade de esperar pelo casamento, é que eu estou nervoso…
Alisei seu rosto e passei o dedo indicador pelo canto de seu olho para secar a lágrima.
- Você jura?
- Juro… Vamos fazer o seguinte? Tem uma coisa que me relaxa… Você sabe que eu tenho os meus problemas…
Seu rosto voltou a se abrir como um blecaute de cortina.
- É aquele seu trauma de infância?
- Sim… — não deixava de ser verdade.
- Você um dia vai me contar, não vai?
- Vou sim, meu amor… Temos todo o resto de nossas vidas pra isso. — Cecília adorava essas frases montadinhas, coisa de filme romântico e de menina que apertava o travesseiro entre as pernas imaginando seu príncipe encantado. — Você me entende?
- Entendo, entendo… Você vai correr, né?
- Você me desculpa?
- Pode correr… Eu sei que isso te relaxa… Só não vai beber, tá? Eu prometi que ia curar você… Quando você voltar eu estarei aqui prontinha para nossa noite de amor.
Cada passada no asfalto era um escape feroz, mais alguns metros pra longe de Cecília e suas mãos e sua língua molhada. Dessa vez, Nado não esperou nem o suor fechar a frente da camisa.
“Você sabe que a gente vai ter que foder a gordinha, né?”
“Cala a boca, Nado.”
“Não, cara, é sério… Você não pode e nem vai ser capaz de levar essa farsa adiante. Se quiser, eu te protejo, como sempre fiz… É pra isso que estou aqui.”
- Eu não quero você aqui!
A senhora com as mãos em concha para se proteger do vento na calçada até deixou o cigarro cair quando gritei.
“Porra, Nado. Me deixa em paz, cara. Hoje não.”
Eu costurava as ruas da cidade com os fones no ouvido, controlando a respiração. Quando imaginava Cecília nua, esperando cheia de dedos e de saliva para me tocar, eu começava a puxar o ar pela boca e percebia que estava forçando o ritmo. Sem conhecer aquela parte da cidade, corri tanto que me vi no final de um viaduto, onde não dava para prosseguir. O ar entrava queimando e sibilando em meus pulmões, mão na cintura, medindo a inevitável volta que eu tanto queria adiar.
“Aquele ali”, ele disse quando viu o monturo de coisas em um canto da alvenaria que emoldurava a sujeira.
“Não, cara. Chega.”
“Que chega, Leozinho! Chega porra nenhuma… Você me calou durante muito tempo com remédio, e agora acha que vai me calar com buceta?”
“Não é isso que…”
“Não é isso é o caralho! Você vai ter coragem, vai? Vai ter coragem de enfiar seu pau naquela mulher como aquele velho tentou enfiar-“
- Chega!
A pessoa que estava dormindo enrolada em cobertores levantou.
- O que cê tá fazendo aqui?
Era uma mulher, não dava pra saber a idade. Acostumada (ou já avisada) aos predadores da noite da cidade imunda, trazia uma chave inglesa em suas mãos.
- Boa noite…
- Sai daqui!
“Tá fácil, Leozinho. Deixa que eu cuido disso”.
Minha boca salivava. Eu já pressentia o êxtase de ver aquele arremedo de gente morrendo nas mãos de Nado, e eu assistindo a tudo. Uma calma começou a tomar conta de mim, e eu respirei fundo.
- Desculpe, senhora… Eu me perdi e-
Não deu tempo. Ela correu em minha direção brandindo a chave inglesa e gritando, expondo as gengivas quase sem dentes.
Nado bloqueou o ataque com o braço esquerdo — ela era mais baixa — e deu uma rasteira na mendiga, que caiu no chão. Imediatamente, desferiu um chute em sua barriga, fazendo-a se contorcer em posição fetal. Ela murmurava coisas sem sentido, gemia de dor. Nado olhou para o lugar do braço onde a chave atingira, e viu que a pele se rompera. Passou o braço na testa para limpar o suor e abriu o seu sorriso mais assustador. Deu meia volta e começou a correr.
“Nado, o que você está fazendo?”
- Eu vou te levar para casa.
“Nado, você já se divertiu, agora deixa…”
- Deixa o caralho. Eu sou o cara que te protege, Leozinho, lembra? Agora a gente tem mais uma missão.
“Não, Nado, deixa que eu me viro com isso”.
- Você, se virar? Você é um fraco, Leozinho, por isso precisa de mim. Você não vai conseguir ficar com a sua pele colada na sua própria mulher. Vai dar nojo, vai dar vontade de vomitar. A gente já passou por isso antes. E é por isso que eu vou fazer isso por você.
Nado entrou no quarto à meia-luz e Cecília já cochilava, de barriga pra cima e a cabeça jogada para trás…
Eu andava a esmo, sentindo o sangue empapando a camisa e descendo para o calção, um pouco abaixo de minhas costelas.
“Olha o que você fez agora!”
“E eu ia saber que aquele mendigo imundo tinha uma faca?”
“Eu estou sangrando, cara… Vou morrer…”
“Deixa de ser chorão, ali, tem um posto de gasolina. Você quer que eu te leve lá?”
“Não, você já fez bobagem o suficiente por hoje, deixa que eu vou sozinho.”
As luzes do posto dançavam na minha frente. Eu já devia estar com uma considerável perda de sangue, precisava de um médico. Eu sempre tinha flashes desses momentos em que Nado assumia o controle, mas quando a faca na mão do homem grande rasgou minha pele eu passei a estar ali, dividindo o protagonismo da cena.
“… a palavra do Senhor Jesus?”
Demorei a focar, mas tinha uma pessoa na minha frente. Uma mulher. Eu ainda via o homem brandindo a faca para a gente, e Nado sorrindo, esperando o momento para avançar.
- Você tem um minuto para ouvir a pala- oh, meu Deus, você está ferido!
A mulher era mais baixa do que eu, cabelos pretos longos, presos em um rabo de cavalo. Sua camisa de mangas longas apertada em suas formas generosas terminava sem definição de cintura, em uma saia que ia até seus pés e segurava uma Bíblia.
- Eu preciso… — minha mão pressionava o lugar do ferimento, e minha careta denunciava a dor. — Preciso de ajuda…
Meus joelhos fraquejaram e ela me segurou.
“Nado…” — ele não respondeu, mas eu sabia que sorria em algum lugar. Desmaiei.
Acordei em uma maca, no pronto-socorro. A menina gordinha de Bíblia na mão estava ao meu lado.
- Ai, graças ao Senhor Jesus Cristo!
- Quem é você? Eu lembro de você…
- Meu nome é Cecília. A gente estava dando sopa para os moradores de rua perto do posto de gasolina e você apareceu, não foi, irmão Hélio?
O irmão Hélio ao seu lado usava um blazer maior do que sua carcaça, e uma das mangas estava presa com alfinete no ombro.
- Foi sim. Se a Cecília não tivesse trazido o senhor pra cá… O médico falou que se o senhor tivesse perdido mais sangue ia ser preciso tomar transfusão.
Levei a mão à lateral do dorso e toquei o curativo.
- Foi fundo? — perguntei.
- Não, não atingiu nenhum órgão… Mas você vai ter que ficar aqui até amanhã, pelo menos, pra se recuperar.
Cecília passou a noite ao meu lado no hospital. E depois foi me visitar em casa. Ela levava bolos feitos com farinha integral, banana e passas. Levava chá, suco e chocolate. Quando eu percebi, a gente já estava namorando — de acordo com ela. Um dia eu estava de saída para correr e ela chegou com brigadeiros. Eu fiquei meio sem graça e a convidei para entrar. Ela me beijou na boca. Sem língua, apenas o encontro de lábios amassados. Eu sentia sua respiração quente e entrecortada, suas mãos me abraçando. Uma sensação ruim começou a apertar meu estômago, e eu ouvi a risada de Nado ecoando em minha mente. Segurei-a pelos ombros e a afastei gentilmente. Foi quando ela disse que estávamos namorando, e que se apaixonara por mim. Eu apenas disse ok.
Por sorte, seus avanços físicos não passaram daí — graças ao seu deus. Literalmente. Cecília havia tido uma criação cristã rígida, sexo só depois do casamento, intimidades de casal pra ela era assistir TV de mãos dadas comendo pipoca. “Você é tão respeitador… Outros homens que namorei sempre queriam me tocar, fazer coisas pervertidas comigo… Eu me sinto tão amada e tão segura ao seu lado!” E me dava aquele beijo estalado enquanto eu prendia a respiração. Ela sentia meu desconforto e não avançava. Eu tinha medo de que ela se machucasse.
Uma vez, cheguei em casa de uma corrida e ela estava lá, me esperando. Haviam sido duas vítimas desta vez, um casal que fazia suas imundícies atrás de uma banca de jornal. Nado pegou um vergalhão e atravessou os dois corpos, com tanta força que perdeu o equilíbrio. Eu tinha as mãos sujas de terra e os joelhos ralados, e ainda estava sob o efeito da adrenalina colhida na noite escura.
- O que você tem?
- Cecília, eu… Eu…
- Você bebeu? É isso?
Foi a deixa. “Sim, bebi”, eu disse. Contei pra ela que havia tido problemas na infância, e por isso fui submetido a tratamentos psiquiátricos — sem especificar, claro. E que agora meu problema era a bebida.
- Eu sempre achei que aquela facada tivesse sido em uma briga de bar… Mas eu vou ficar ao seu lado, vou te ajudar a se curar…
Eu arrumara um álibi, o vício é sempre uma doença de coitadinhos. Porém, naquele momento, percebendo o cuidado que Cecília me ofertava com tanto amor, decidi parar de vez com aquelas mortes. Sua presença me fazia bem e, conforme eu permitia que ela entrasse cada vez mais em minha vida, eu me sentia mais calmo, quase seguro. Não sentia mais necessidade de trilhar o caminho que Nado me oferecia. Claro que ele ficava raivoso — principalmente em corridas mais longas — mas eu conseguia fazer ouvidos moucos para seus gritos, até que gradualmente ele foi desaparecendo.
O caminho natural, é claro, foi que nos casássemos.
Cecília estava linda, o vestido branco perfeitamente adaptado às suas formas generosas…
Já era tarde, e eu tinha parado para comprar água em um bar. Paguei e saí andando, soltando a musculatura, quando ouvi a voz.
- Ei, garoto.
Apertei o passo. O centro da cidade, um frevo louco durante o dia, parecia uma cidade-fantasma, com seus escritórios vazios e lojas fechadas. Pelo canto dos olhos percebi que a sombra se movia em minha direção, camuflada pelo breu intermitente cortado por faróis.
- Ei! Você aí!
Eu virei a cabeça e olhei diretamente para o escuro, de onde vinha a voz. Era ele, o mesmo velho da casa de papelão do pique-esconde. Saía das sombras em andrajos, encurvado em sua carcaça e de mãos estendidas. Meu coração, já acelerado pelo ritmo puxado da corrida, agora ia sair correndo sozinho, pela boca. A garrafa tremia em minha mão direita, e quase ganhou o chão.
Ele se aproximava cada vez mais. Eu não conseguia falar nada, não conseguia correr, não entendia sequer o que ele dizia. Na minha cabeça tudo ecoava como “Shhhh… Fica quietinho que você vai até gostar…” Até que ele pegou meu braço.
Olhei para aquelas mãos imundas, com calosidades deformadas tocando a minha pele suada. Abri a boca para tentar pedir que ele se afastasse, mas meus lábios se transformaram em um sorriso.
“Deixa que eu cuido de você, Leozinho” — disse Nado.
- Ei, garoto. Vem cá.
Claro que não era ele. Ele estava morto.
“Eu mato ele outra vez”.
“Vai embora”,
“Ele vai te pegar de novo, vai querer fazer aquelas coisas nojentas…”
- O que é, senhor?
- Você me dá um cigarro?
- Não fumo.
- Então me dá um trocado? — e vinha chegando cada vez mais perto. Não era ele, mas era ele. Sempre o mesmo velho, querendo colocar suas mãos sujas em minha boca para que eu não gritasse.
“Você é muito mole, Leozinho, deixa que eu resolvo”.
“Nado, não se…”
Senti o cano de ferro na minha mão esquerda antes que eu percebesse que havia me abaixado. Nado girou o cano, e ele atingiu a lateral da cabeça do mendigo, fazendo voar dali alguma coisa pegajosa e negra que brilhou na fraca luminosidade com barulho de madeira molhada. Não era mais o apagão da primeira vez, eu assistia às atrocidades de Nado de camarote, como um espectador atento em um jogo da TV a cabo.
O velho deu um rodopio e caiu no chão, gemendo. Senti os cantos de minha boca se esgarçando, em um sorriso que eu mesmo nunca dava, todos os dentes à mostra como um cavalo em alto. A mão se afrouxou, a barra de ferro deixou de pinicar a palma de minha mão e Nado avançou a passos largos na direção do corpo já inerte. Ele usava as duas mãos para socar a cara do infeliz, que já se tornava uma massa sem forma e gelatinosa. Quando ficamos em pé, arfando, ele começou a desfazer o sorriso.
No instante seguinte, eu estava em casa, lavando os braços sujos de sangue sob o chuveiro.
“O que você fez, cara?”
“Sentiu minha falta?”
- Você matou o mendigo!
“Ele ia te machucar, Leozinho. Você não aprendeu nada nesse tempo todo em que me manteve adormecido por aquele remédio escroto?”
Eu esfregava os braços, e via um vermelho amarronzado descer pelo ralo. Minhas carnes se tremiam, meus olhos ardiam a ponto de não conseguirem ficar abertos.
“Ele queria nos ferir, Leozinho, igual àquele cara na cabana, lembra? Igual ao Maradona, aquele vira-lata pulguento de Dona Geiza. Você é um fraco, não sabe se proteger sozinho, mas eu estou aqui”.
Na manhã seguinte, procurei nos jornais, ouvi as rádios de notícias, e nenhuma menção a morador de rua assassinado. Nem na outra manhã. Dias, semanas e meses se passaram, e nada.
A próxima vítima sequer chegou a nos abordar. Estava dormindo atrás de uma loja de móveis, enrolada em um cobertor cinza todo cheio de lama. Não sei se era homem, mulher ou criança, lembro apenas da voz insistente de Nado em meu ouvido “vamos, cara, vamos salvar alguém, vamos eliminar outro câncer desses”, desde o quilômetro seis. Eu virei então em uma esquina, e lá estava, sob a marquise. Era até uma rua principal, mas era tarde da noite, e nenhuma janela espiava a cidade.
E assim a gente ia. De algum modo, eu me sentia melhor depois dessas corridas assassinas, entrava em um torpor semelhante ao que o remédio me causava, só que bom. Eu conseguia controlar Nado apenas para que não criássemos um padrão nas mortes. De vez em quando até saía algo nos jornais, mas mendigos e moradores de rua (nós aprendemos rapidamente a diferenciá-los) são as franjas apodrecidas da sociedade, ninguém se importa com a supressão de alguns dos elementos do cenário cotidiano. Era fácil, era relaxante, quase terapêutico. Até dar merda.
Eu andava a esmo, sentindo o sangue empapando a camisa e descendo para o calção…
Depois da morte do cão, foram sessões e mais sessões com a psiquiatra, um monte de exames onde colavam ventosas na minha cabeça, papeis e mais papeis cheios daquelas ondinhas irregulares, diagnósticos e receitas médicas. Por alguma razão, meu cérebro não funcionava bem, e eu teria que tomar remédios controlados. Meu pai não aguentou a pressão e nos abandonou. “Disritmia de 3º grau”, era o que estava escrito no diagnóstico, em uma época antes de TDAH, DDA, dislexia… E outras patias.
Quando entrei no tal do Gardenal, Nado sumiu. Passei o resto de minha infância e adolescência como um garoto normal — um pouco lerdo devido aos remédios, mas sem outras ocorrências que incomodassem e sobressaltassem os adultos. Eu era vigiado de perto, questionado, avaliado o tempo inteiro, ainda que nunca mais minha mãe falasse sobre o mendigo e o cachorro Maradona. Até eu mesmo havia me esquecido disso, e as visitas à psiquiatra passaram a ser mais espaçadas, apenas para cumprir rotina. Até que ela um dia sugeriu que eu fizesse alguma atividade física, para iniciar o desmame do remédio aos poucos — disse inclusive que talvez ajudasse em minha “socialização precária”, um eufemismo que a doutora Elaine sempre usava para se referir à minha falta de vida amorosa.
Acabei escolhendo uma atividade física solitária, a corrida de rua. Eu me sentia desconfortável entre outros seres humanos, principalmente em equipe — o que excluía de cara os esportes coletivos. Ir à academia realizar fortalecimento muscular era o suplício semanal a que me submetia, até a atendente me chamar carinhosamente um dia de Léo, o que passou a me deixar apenas a rua para a solidão.
Eu corria todo dia. Saía da faculdade, passava em casa para colocar o uniforme — tênis, shorts, camisa leve, bermuda de compressão — e ganhava a rua. Aos poucos o remédio foi sendo retirado, até que um dia recebi alta. A morte de minha mãe deixou a doutora apreensiva, quis voltar com os remédios, mas eu resolvi isso correndo mais. E mais. Não tinha sentido em voltar para aquela casa vazia, então eu me demorava na pista. O que era só uma corrida pela orla virava um ziguezaguear pelas ruas adjacentes, até o ar entrar queimando em meus pulmões. Fones desligados no ouvido, para não me deixar levar pela sinfonia urbana, e o mundo se resumia a passadas alternadas em direção a lugar algum.
Já era tarde, e eu tinha parado para comprar água em um bar…
Uma semana depois, Nado matou o cachorro da vizinha. Eu brincava sozinho no quintal, sempre observado como se fosse uma leiteira prestes a ferver e cagar o fogão todo, quando Maradona — o vira-lata — entrou pelo buraco da cerca. Todo mundo tinha medo do Maradona, aquele cachorro parecia possuído! Quando ele fugia pra rua não tinha amigo, era cada um por si, até Dona Geiza aparecer e recolher o infeliz. Desta vez ele escapou pelo buraco da cerca e veio em minha direção, salivando e latindo. Minha mãe gritou, não ia dar tempo dela me alcançar, mas Nado esperou o momento certo e cravou suas mãos na goela do animal, até o latido virar um uivo triste e sumir de vez. Dessa eu vez eu lembro de cada detalhe, como se assistisse a um filme, e visse Nado apertar as minhas mãos no pescoço do cão. Era um pescoço grosso, e Nado precisou das duas mãos, até sentir um “crec” e largar o corpo já sem vida no chão.
Depois da morte do cão, foram sessões e mais sessões com a psiquiatra…
Nado sempre aparecia durante a corrida. Geralmente entre o quarto e o sexto quilômetros, quando o meu corpo já entra em modo automático e a mente se dilui em passadas ritmadas. Na primeira vez eu nem corria ainda — pelo menos não como esporte, corria apenas como correm as crianças. Estávamos todos brincando de pique-esconde naquele terreno baldio, quando eu vi uma casinha no meio do mato feita de tábua e papelão — seria o lugar perfeito pra me esconder das outras crianças. Mesmo com medo do escuro, eu me embrenhei pra dentro daquela construção rudimentar e me quedei imóvel, agachado, com a respiração ofegante. Só percebi que não estava sozinho quando a mão suja e calejada tocou meu ombro.
Ainda ensaiei um grito — mais de susto do que da compreensão do perigo — mas a outra mão, suja de terra, tapou a minha boca.
- Shhhh… Não fala nada, garoto… — tive vontade de vomitar, o cheiro daquela mão debaixo de meu nariz, o gosto impregnado em meus lábios. — Fica quietinho que você vai até gostar…
Então, de súbito, percebi o risco imediato a que estava exposto. Eu entendia muito pouco dessas coisas, mas como todo bom menino pobre sabia que existia esse tipo de gente ruim no mundo, que fazia coisas horríveis com crianças.
Eu me debatia, tentando escapar, mas o homem já havia me envolvido com o mesmo braço que tampava a minha boca, e com a outra mão mexia em alguma coisa dentro de suas próprias calças. Senti algo duro sendo conduzido pela mão do mendigo para dentro de mim, empurrando e causando dor enquanto eu tentava me esquivar. Então o outro apareceu pela primeira vez — era Nado o seu nome — e a próxima coisa que eu me lembrava era do cobertor Parahyba em meus ombros na sala da psicóloga, e das constantes ânsias de vômito que me causavam o cheiro daquela mão e o sangue do mendigo em meu rosto.
Eu contava, contava o que me lembrava, e parecia não ser suficiente. Estava assustado com aquele monte de gente do lado de fora da sala da psicóloga, e dos olhos vermelhos de minha mãe que conversava com homens de terno. Algumas horas ali, e mesmo com toda a jujuba e chocolate quente que me davam, eu só queria ir pra casa.
Naquela noite, não dormi. Mais pelas vozes de Nado em minha cabeça do que pelas lembranças do dia. Nado sentado na beira da cama, contando com detalhes o que o mendigo queria fazer comigo e ele não deixou, e acrescentando detalhes mais ricos sobre como ele evitara o sofrimento. Eu fiquei com medo, mas ele dizia que sempre estaria ali para me salvar.
“Difícil é matar o primeiro, Leozinho”.
Conto publicado no livro “Conta forte, Conta alto”, só de contos inspirados em músicas do Martinho da Vila, lançado em 2019 pela Flup.