Dipilih — O Escolhido, em malaio
Em um arquipélago do Pacífico, um menino nasce com o destino de ser o Escolhido, aquele que trará uma nova era de paz e fartura. Mas o preço é alto demais.
Apesar de sua ilha — uma entre tantas dezenas que levitam no Pacífico — não ser exatamente uma monarquia, o pequeno Udang sempre teve uma vida de príncipe. Quando sua mãe Amina ficou grávida, a Velha (uma mistura de sacerdotisa, curandeira e bruxa da aldeia) lançou um pó na fogueira, abanou a fumaça e caiu de joelhos. Havia sido treinada toda a sua vida por este dia. Chorando, disse a todos que estava para chegar o Dipilih, o Escolhido. E esse escolhido era Udang.
Na infância, não havia brincadeira que Udang não comandasse, ou vontade sua que não fosse realizada. O maior peixe, o coco mais doce, a água mais fresca: tudo era levado para a cabana de Amina, que reverencialmente ofertava a seu pequeno Udang (era um pouco curvado, o menino, daí o apelido “Udang” — camarão, na língua de seu povo).
A atenção com sua educação era dobrada: Udang era ensinado a não ser cruel com seus amiguinhos, algo dificílimo, pois mesmo quando era, não podia ser contestado. Uma vez o menino Irfan tinha jogado areia em seu rosto por discordar do resultado de um jogo, apenas para ser severa e violentamente repreendido, sob os risos secretos de Udang.
Tinha um instrutor para exercícios físicos, outro para caça e um outro para pesca, ciências fundamentais em sua cultura. Nas noites em que a lua mudava seu formato, Udang dormia na cabana da Velha para ser iniciado nas artes divinatórias e curativas (que às vezes se confundiam).
Crescer rodeado de tantos privilégios e bajulações fez de Udang um jovem arrogante e ansioso. Se um aldeão não lhe fazia o cumprimento cerimonial, exigia suas prerrogativas com afetação. E ria escondido ao ver os castigos físicos a que eram submetidos. “Quero aquele peixe que ele está comendo”, dizia, e o peixe vinha para suas mãos. “Quero aquela casa”, e a família que lá habitava tinha que procurar um outro lugar na ilha para morar.
Um dia, quando caminhava pelo aglomerado de casas chamado Pasir Merah, seus olhos foram capturados pela coisa mais bela que já havia visto em seus catorze anos. Noor era uma bela menina, um pouco mais velha que Udang, e ajudava a sua mãe no mercado.
— Eu quero aquela mulher. — Disse Udang para seu pajem.
O pajem abaixou a cabeça e nada respondeu.
— Ahmad, você não me ouviu? Eu quero aquela mulher, agora!
Foi a primeira vez que Udang ouviu um não.
Quando chegou à casa da Velha, conduzido pelos fortes pescadores, Udang estava furioso. Gritava e se debatia; ao ser largado no chão pelos seus captores, passou o braço em cima da mesa da bruxa e derrubou todos os potes.
— Eu já sou um homem, e um homem precisa de uma mulher! Eu quero AQUELA MULHER!
A Velha sorriu. Deu dois tapinhas no ombro de Udang (que já contava um palmo acima de sua cabeça), e lhe serviu vinho de palma. Para si, enrolou umas ervas em uma folha seca e acendeu. O cheiro doce do cigarro da Velha e o vinho de palma contiveram o rapaz.
— Você é um homem que nunca será. — Disse a mulher idosa, prendendo a fumaça de seu cigarro e soltando lentamente pelo nariz. — Você é o Dipilih, o Escolhido. E tem uma missão.
Sob o olhar incrédulo de Udang, a Velha falou. A cada cem ciclos nascia um Dipilih, a alma pura encarnada em um corpo perfeito. Sua chegada era anunciada pelos olhos brilhantes do céu, que se alinhavam para comemorar. O Dipilih deve se manter perfeito e puro, até o dia de encontrar o seu destino e cumprir a profecia. Por isso não poderia nunca se deitar com uma mulher como fazem os homens vulgares.
A prosperidade das ilhas que compunham o seu arquipélago dependia da pureza do Escolhido, e da purificação pela qual passaria. Falou, inclusive, que era uma honra para seu povoado ele ter nascido ali, na ilha deles, entre tantas outras.
Udang bebia o vinho de palma e ouvia estupefato as palavras da Velha. Nunca tinha sido contido. Nunca tinha sido contrariado. Até agora.
— Mas não se preocupe, meu pequeno Camarão. O dia da purificação já está próximo.
A Velha ia falando, e as palavras iam se enraizando no cérebro do jovem, mesmo anestesiado com a bebida. Mais tarde, quando saiu dali, Udang se lembrava de alguma coisa, principalmente do cântico cerimonial, ensaiado e treinado em dueto naquela noite, mas no geral eram apenas o vinho de palma e o cheiro da fumaça doce.
Em menos de dois ciclos lunares, chegou o grande momento. Toda a ilha acordou em grande festa, representantes de todos os povoados vieram dar à praia, trazendo oferendas, música e alegria.
Quando a lua começou a ser comida pelo grande Naga e ver diminuído o seu esplendor, Udang foi conduzido de jangada até a metade do horizonte. Havia sido vestido com uma túnica branca, tirada de uma arca, feita com um tecido que Udang nunca tinha visto. Quem conduzia a nau era seu amiguinho de infância, Irfan, com o rosto deformado pelo castigo sofrido há tanto tempo.
Chegando no ponto determinado, Irfan largou o rústico ancorote feito de pedra e amarrado com sisal, estabilizando a pequena embarcação. Deu um abraço em Udang e o agradeceu, com seu sorriso torto. Logo em seguida, pulou na água e voltou nadando, vencendo mais ou menos a distância de duas mil jardas que separavam a jangada da ilha.
Udang ficou sozinho, olhando para as tochas que iluminavam a costa e ouvindo, ainda que abafados, os sons dos tambores. Até que, subitamente, o barulho estancou.
No céu, a lua já era apenas uma sombra. O Grande Naga havia comido o astro, as estrelas (os olhos brilhantes do céu) brilhavam mais nesta hora, formando as imagens tão conhecidas dos povos que habitam as ilhas do Pacífico.
Udang pensou em voltar. Sabia nadar, não queria morrer. Não sabia se queria mais ser o Dipilih. Mas se lembrou do que a Velha tinha dito, que toda a prosperidade de seu povo dependia de sua purificação.
Abriu os braços e começou a entoar o cântico que aprendera no dia da revelação.
Subitamente, a jangada balançou, como se uma onda um pouco maior lambesse a sua quilha. Em seguida, um grande estrondo, parecido com o rolar de pedras da montanha de Buaya Kecil, a maior da ilha.
Em um raio de quase duas milhas, grandes rochas começaram a brotar da água. Pedras pontudas, grandes, que subiam na direção do céu como palmeiras que crescessem ignorando o tempo.
Foi quando Udang se lembrou. Não eram pedras. Eram os dentes de Nagalaut, o grande dragão do mar.
Era a purificação.
Não demorou para que os dentes revelassem uma bocarra descomunal. Caberia uma ilha pequena naquela boca — talvez até a de Udang.
As mandíbulas de Nagalaut se fecharam com dificuldade, principalmente devido ao grande volume de água. Udang se viu no meio de um vale que ficava cada vez mais escuro. Olhou para lua, e um pedaço voltava a brilhar novamente. O Grande Naga começava a expelir e libertar a deusa Bulan, enquanto Nagalaut recebia seu sacrifício.
A bocarra do dragão marinho finalmente se fechou, e o mundo de Udang havia se transformado em trevas. Na praia, as ondas gigantes formadas pelo deslocamento da criatura colossal ainda arrastaram alguns incautos aldeões — mas eram apenas danos colaterais.
A purificação tinha sido realizada. As ilhas do arquipélago podiam respirar aliviadas, pois a partida do Dipilih em forma de oferenda iniciava mais uma grande era de paz e fartura. Os tambores ressoavam, alegres. Na praia, a Velha sorria, e fumava seu rústico charuto.
Udang acordou. Depois do mundo ter se fechado em trevas sobre sua cabeça, sua jangada fora tragada por uma forte corrente marítima, sendo conduzida por escuros túneis. Agarrado na construção rústica de madeira, entalhada em apenas um tronco (tipo de flutuante chamado de “piroga” pelos ameríndios, do outro lado do mundo), o rapaz não enxergava nada e nem sabia para onde ia, apenas a pulsão da vida o mantinha com as unhas cravadas na madeira até sangrar.
Deve ter desmaiado em algum momento, não se lembrava. Porém, ao acordar, estava em uma praia muito parecida com aquela onde havia sido criado. O olho do deus Matahari, o Sol, o castigava com sua vigilância.
Udang olhou em volta e viu pessoas. Outras pessoas, que ele nunca tinha visto. “Será este o outro mundo, o mundo dos mortos?”, ainda pensou. Mas as pessoas que o cercavam se pareciam muito com ele, e com aqueles que havia deixado para trás. E festejavam, festejavam sua chegada.
Uma liteira, carregada por dois homens fortes, veio até onde estava Udang. Dentro dela, olhando tudo através de cortinas semitransparentes, um velho, muito velho. Vestia uma túnica branca, parecida com a sua, e sorria.
“Dipli! Dipli!” — gritavam os outros. “Venceu Nagalaut e veio nos salvar!”, era o que diziam os cânticos. Quando a liteira foi colocada no chão, o velho se levantou e foi até Udang. Deu-lhe um forte abraço e ofertou-lhe um sorriso, segurando em seus ombros.
— O meu povo agora pode respirar aliviado, pois a tua chegada indica o início de uma novo ciclo de paz e fartura.
Mal terminou de falar, o velho desabou. Morreu ali mesmo, antes de seu corpo bater na areia.
Udang viveu ainda muito anos na nova ilha. Casou-se com uma das filhas do velho, teve seus próprios filhos e filhas, legislando e usufruindo de cada maravilha que aquele paraíso tinha a ofertar. Os peixes eram mais abundantes, as frutas eram mais doces, e tudo lhe era levado, cerimonialmente. Realizava matrimônios, encomendava as almas e, usando os conhecimentos aprendidos com a Velha, curava os doentes que podiam ser curados.
Um dia, muitas luas depois, sentado em sua cadeira de palha, olhando os netos brincando de lutar como ele mesmo havia aprendido, Udang ouviu um rugido alto, quase ensurdecedor. Um rugido seco, concreto. Como se pedras rolassem da única montanha da ilha, o monte Berbatu.
O já velho Udang conhecia esse som.
Foi até sua arca e buscou a túnica branca. Quando saiu de seus aposentos, a liteira, de cortinas semitransparentes, já o esperava para levá-lo de volta à praia.
Rodrigo Santos, pengarang (autor, em malaio)