Desejar coisas impossíveis

Rodrigo Santos
3 min readJan 22, 2024

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— Eu queria que este dia nunca acabasse. — Você me disse, segurando as sandálias enquanto caminhávamos na praia.

Aquele sexta-feira nunca acabou, mesmo. Tenho ainda vívidas todas as sensações; se fechar os olhos, neste momento, consigo sentir o cheiro da água salgada em sua pele, o gosto do perfume floral misturado com a maresia enquanto eu mordia o seu trapézio, pleno de paixão. A luz do sol preenchia toda a abóbada celeste, e eu abobado por ter você tão perto.

Foi a véspera da invasão.

Ao anoitecer, nos recolhemos em uma casa simples, alugada através de um aplicativo. Era reta, um retângulo de alvenaria divido em três cômodos, com simples lençóis como portas e telhado sem forro. Eu tive a certeza de que nunca ninguém no mundo tinha sido tão feliz quanto nós éramos naquele momento. E falei isso pra você, que me respondeu sorrindo:

— Talvez Taffarel, quando Baggio chutou pra fora.

O canto esquerdo de sua boca subia alguns milímetros a mais que o direito quando você sorria; eu via seu canino pontudo e sabia que você estava alegre.

Você só mostrava os caninos quando estava alegre.

O gosto da água do mar deu lugar ao sabor doce de teu suor (eu realmente posso sentir isso agora, mesmo aqui, neste bunker. É só fechar os olhos e pressionar os lábios), e depois dormimos juntos, unidos em um encaixe simétrico e indolor, como se nossos corpos fossem aquelas peças do meio de um quebra-cabeças de cinco mil.

Você me sonhava nadando no profundo mar esverdeado e seus carneirinhos salpicados de ouro, como me disse quando acordamos. Eu sonhava com você, nua, correndo na mesma praia, segurando uma taça de vinho em uma das mãos, e mostrando os caninos.

— Você sabe que caninos pontudos são sinal de distância evolutiva, né? A tendência, com bifes macios e facas sem ponta, é que nossos dentes se arredondem.

— Então eu sou uma mulher das cavernas, Beto?

— Não totalmente, porque outro significativo traço da evolução é a perda dos pelos. Eu adoro os seus pelos.

Aquele cheiro doce. O gosto de mar. Os sonhos compartilhados, o encaixe perfeito, o desejo de coisas impossíveis que se rabiscavam na penumbra do quarto alugado.

O amanhecer violento tirou de nós todas as esperanças. Violentamente. O céu estava cinza, pessoas morriam aqui e ali, e nós corríamos.

Corremos até que um dos disparos sônicos a atingiu, e eu me vi segurando apenas um de seus braços. Uma fração da multiplicidade de deusas que você era, pingando sangue no meio-fio. Era quase como estar chapado, e me movendo através da multidão que buscava abrigo.

Não lembro por quantos metros ainda segurei a sua mão até perceber. Larguei lá, no meio da rua principal, perto da padaria (onde comprávamos sonhos), e continuei correndo. O instinto de sobreviver a mais um dia era mais forte.

Eu nunca vi a cara de um deles. O sol agora é frio, as naves cobrem a tampa do mundo para onde o olhar mire, e tudo o que sempre desejei, Elise, se foi com a invasão. Vivemos escondidos em subterrâneos como ratos gigantes, sem pelos (alguns de nós mesmo sem caninos), roubando grãos e pedaços de carne de procedência duvidosa para sobreviver.

E eu me lembro daquela sexta-feira na praia, nós dois apaixonados e desejando coisas que pareciam destinadas a serem perenes enquanto durassem.

O beijo salgado.

O suor adocicado.

Tudo isso nublado pelas lágrimas de dor e saudade enquanto escrevo esta carta pra você, Elise; uma carta que projeta sonhos agora inviáveis, como o que corríamos pelados na praia, bebíamos vinho e o mundo não era frio e cinza.

Só me restam as lembranças agonizantes, as preces, a fome e a velha mania de desejar coisas impossíveis.

Uma singela homenagem ao The Cure.

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Rodrigo Santos
Rodrigo Santos

Written by Rodrigo Santos

Escritor de São Gonçalo — RJ. Contista, romancista, poeta, roteirista. Autor de “Macumba”, “Se o medo tivesse um som”, entre outros. Evoé!

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