Bird is the word
Cada batida seca na antepara de metal do compartimento fazia o estômago de Joriz de contorcer. Os passos arrastados pelo corredor e os grunhidos molhados aumentavam, tornando cada vez mais difícil a fuga.
O operador de radar filipino olhou em volta e o que viu foi apenas desespero.
— Alguém precisa chegar ao passadiço e acionar o socorro.
— Você jura, Joriz?
— Imediato N´Guyen, com todo o respeito, vá para a puta que o pariu.
Era o segundo dia daquele sofrimento, escondidos na câmara frigorífica, no convés inferior. Joriz era operador de telecomunicações do MS Bitburgh há oito anos, desde que o navio viera da Dinamarca, e estava no convés principal no momento do embarque da carga, no porto de Itaqui. Estranhou o grande tanque laranja, mas achou que fosse mais um cilindro de mergulho.
— Nós vamos todos morrer, vamos todos morrer… — repetia Ramirez, o moço de máquinas, se contorcendo de dor no chão. Garoto novo, nem cinquenta dias de mar na carreira ainda.
O enfermeiro Santino apertava a tala em sua perna direita. Ramires tinha sido o último a se abrigar na câmara, e o inchaço abaixo de seu joelho denunciava a fratura exposta.
O MS Wildrake tinha sido construído como navio de suporte, com câmara hiperbárica e sino de mergulho. Após um acidente em que morreram dois mergulhadores, virou o MS Holger Dane, comprado pelo exótico milionário dinamarquês Henning H. Fadderbøll, um notório e midiático caçador de tesouros.
Comprado pela CBGB em uma acirrada disputa com a Marinha brasileira (que queria o Holger Dane como navio de socorro a seus submarinos), singrava agora os mares como MS Bitburgh, e seguia a função a ele dada por Sir Fadderbøll — caçar tesouros. A CBGB era uma holding internacional de mercenários, piratas e outros escroques, usada para lavar dinheiro de várias atividades através de sua busca incessante por espólios de naufrágios. Naquele fatídico junho, procuravam por restos de navios afundados pelos u-boat na segunda guerra.
Até o oitavo dia de mar.
Bentley, o encarregado das turbinas Daimler-Benz, subira ao refeitório para pegar um café. Seu couro escocês, curtido no álcool, era uma mistura da vermelhidão do calor da praça de máquinas e fuligem.
— O que há, Milton?
O paioleiro Milton estava encostado junto à máquina. Olhos vermelhos, narinas como se em carne viva.
— Bentley… — falava arfando, com dificuldade. — Aquele cilindro laranja… Que desceu para o paiol de vante.
— O que tem ele? Não é das máquinas. Não é do pessoal do mergulho?
— Tinha uma etiqueta, com uns símbolos. Não tinha a bandeira alfa.
Bentley colocou o açúcar, preencheu de café e ficou rodando o copo plástico para adoçar sem ter que usar a colher. Milton tossiu.
— Você está bem, velho camarada?
— Escuta… O cilindro… furou. Saiu um gás que-
Milton avançou então para Bentley, que não teve defesa. Antes que o copo de café se espatifasse no chão, os dentes de Milton rasgavam a jugular do escocês.
Mas ninguém que estava na câmara frigorífica àquela hora tinha visto isso. A praga se espalhou pela tripulação, e cada um deles foi confrontado em um momento diferente, em um compartimento diferente, até que ali fosse seu último refúgio.
Joriz, o imediato N´Guyen, o enfermeiro Santino e o boy Ramirez, além da nova cozinheira cubana, a jovem Ana Lucía. Sentada em um canto, com fones nos ouvidos sob o capuz do casaco, ela olhava para a antepara sem qualquer expressão, enquanto os homens discutiam.
Santino se levantou e chamou o imediato e o operador de radar para um canto.
— O boy Ramirez precisa ser conduzido para um hospital. Está perdendo muito sangue.
— Santino… Acredito que este seja o menor de nossos problemas. Temos uma tripulação de 40 pessoas infectadas com não sei lá o quê-
— Zumbis! São zumbis e vamos todos virar zumbis!
— Não diga bobagens, Ramirez! — falou o imediato, voltando-se novamente para os homens ao seu redor. — Este navio não pode chegar ao porto. Se chegar, a praga se espalhará. É preciso cortar o piloto automático, e enviar um SOS.
— Mas quem chegará ao passadiço? Estamos a dois conveses de lá!
Os homens se entreolharam.
— Não contem comigo. — disse Santino. — Preciso cuidar do boy.
— Imediato?
— Ah, Joriz. E quem ficará no comando do navio?
— Que comando? Que navio, N´Guyen? Porra!
— E por que não vai você?
— A responsabilidade é sua! E que maldito cilindro laranja era aquele?
O imediato se quedou em silêncio.
— Viu? Você sabe o que está acontecendo! Patife!
— Não, não sei. Quem assinou a guia de recolhimento foi o senhor comandante. Pergunte a ele!
— Como é que eu vou perguntar pra um… pra um… pra um zumbi!
Os homens aumentaram o tom de voz e começaram a discutir. No canto, a menina Ana Lucía deu pausa no fone, que tocava Sílvio Rodriguez, e se levantou.
— Yo me voy.
Sílvio Rodriguez a lembrava de sua avó, e de todas as misérias a que tinha sido submetida na infância. A perda dos irmãos na travessia, a vida suja em Nova York (e todo o trajeto até lá).
— Você? Você é a cozinheira…
— Ana Lucía. O que tenho que fazer?
Os homens suspiraram aliviados.
— Você primeiro precisa parar as máquinas. Tem um botão vermelho no painel de comando, de parada emergencial das turbinas. Sabe ler em inglês?
Ana Lucía olhou para o imediato, e não precisou responder para o homem sentir um calafrio.
— Ok, ok. Ana Lucía, escuta, você depois precisa enviar um sinal de SOS. Se der tempo, explicar pelo rádio a nossa situação, mas isso é terciário. O principal é parar o navio, e enviar o sinal de SOS. Você entende?
A moça mexeu no telefone, escolhendo as músicas.
— Temos armas?
Todos olharam em volta, e começaram a procurar, até o menino Ramirez. Conseguiram um cutelo esquecido ali por algum paioleiro, e um bastão de madeira usado como escora.
— Só isso?
O imediato abriu a pesada japona de frio.
— Eu-eu estava guardando isso aqui, peguei no camarote do comandante.
Uma escopeta, calibre 12.
A mulher pegou a arma e engatilhou com apenas uma mão, demonstrando alguma prática. O imediato ainda lhe passou alguns projéteis, que ela enfiou no bolso do casaco.
— Travar as máquinas, mandar o SOS, comunicar por rádio. Só isso?
— Sim. Que Deus esteja do seu lado.
Ana Lucía fez um muxoxo, e olhou com desdém. Joriz pegou em seu ombro.
— Por quê?
Ela sorriu.
— Porque eu quero viver, e se minha vida dependesse de homens sem bolas como vocês ela já teria acabado.
Na porta do frigorífico, Ana Lucía deu o play. Ramones, “Blitzkrieg Bop”. Joriz, N´Guyen e Santino se preparavam para deixá-la sair, porém estavam mais preocupados de que nada entrasse.
A música invadiu os fones, e Ana Lucía não ouviu mais nada do lado de fora de sua cabeça.
One, two, three, four!
Quando saiu, deu de cara com dois homens no corredor. Com um tiro de escopeta, explodiu a cabeça do primeiro. Uma pezada afastou o outro, e o cutelo na mão esquerda atingiu o seu tórax.
Hey, ho, let´s go
Hey, ho, let´s go
A mulher teve alguma dificuldade para retirar o cutelo, e mirou as escadas que levavam para o convés principal. Não viu os outros tripulantes, tomados pela infecção, forçarem a porta e invadirem finalmente o frigorífico onde há pouco ela se refugiava.
Na subida da escada, encontrou o mestre Macaco da Lua, encarregado da marinharia. Agarrou-o pela lapela do macacão e o jogou para baixo.
Apareceu no convés principal de surpresa. Os tripulantes do navio, infectados, arrastavam os pés e batiam nas anteparas. Sangue e pedaços no chão, cheiro de podre.
Ana Lucía não hesitou. Precisava chegar na ponte de comando, o passadiço.
Hey ho, let’s go
Shoot ’em in the back now
What they want, I don’t know
They’re all revved up and ready to go
Ela atirava e eles caíam. O barulho era ensurdecedor, grunhidos e gritos — alguns até de socorro, vindo de alguns camarotes. Não havia tempo para socorrer ninguém. Era carregando a escopeta e atirando, o sangue grosso espirrando pelas anteparas e no casaco.
Mais um lance de escadas e chegaria ao passadiço, no convés 01, quando uma mão agarrou sua canela. Senhora Judy, a oficial de navegação.
Não daria tempo de carregar. Ela desceu o cutelo e decepou o braço da mulher, mas os dedos continuavam a apertar seu tornozelo. Alcançou as escadas, deixando vários corpos para trás. Apenas os tiros na cabeça os impossibilitavam, as outras ações apenas diminuíam a sua marcha.
They’re piling in the back seat
They’re generating steam heat
Pulsating to the back beat
The blitzkrieg bop
Hey ho, let’s go! Hey ho, let’s go!
Hey ho, let’s go! Hey ho, let’s go!
A porta interna que dava para o passadiço estava trancada. Teria que dar a volta. No fone de ouvido, a seleção randômica da playlist dos Ramones iniciou uma nova música. “Havana Affair”
PT boat on the way to Havana
I used to make a living, man
Pickin’ the banana
Now I’m a guide for the CIA
Hooray! for the USA
“Que se fodam os USA”, Ana Lucía pensou. “¡Siempre odié esta canción!”
Mas não dava tempo de trocar. Ganhou o convés exterior e viu a luz do dia pela primeira vez em muito tempo. O mar estava calmo, e o MS Bitburgh seguia em direção ao horizonte. O sol já começava a se esconder atrás da grande massa de água, não deviam estar longe da costa.
Do lado de fora, poucos zumbis ameaçavam Ana Lucía. Jogou uns dois pela balaustrada, ouvindo apenas o baque surdo dos corpos no mar. Subiu correndo as escadas.
I used to make a living, man
Pickin’ the banana
Hooray! For Havana
“Hooray!”, Ana Lucía estraçalhou a fechadura da porta de madeira que dava para a ponte de comando, agradecendo pela porta-estanque não estar fechada. Deu de cara com o comandante.
Comandante Deacon (ou Dee-Dee), era velho, e já parecia um zumbi antes mesmo da infecção. Agora segurava firme no timão do navio, e babava sangue pelo buraco onde fora seu lábio inferior.
Ana Lucía atirou pelas costas, espalhando os miolos infectuosos pela janela que dava para a proa. “Parar as máquinas, enviar SOS, comunicar por rádio”.
O painel de controle estava danificado. O piloto automático não funcionava, e Ana Lucía compreendeu. O comandante Dee Dee estava pilotando o navio na direção da costa.
Calcou o botão de parada emergencial com o cabo do cutelo ensanguentado, mas nada aconteceu. Olhou debaixo do painel, e viu um emaranhado de fios arrebentados, algumas faíscas.
— ¡La puta Madre!
Teria que ser no manual. Ao lado do timão, duas alavancas. Ana Lucía puxou as duas para trás, e o ronco das turbinas Daimler-Benz pararam. O navio deu um solavanco, e começou a boiar placidamente, sendo jogado apenas pelas ondas.
Ana Lucía pegou o controle de fonia. Apertou o botão e falou.
— Chamando todos os contatos! Chamando todos os contatos! Aqui é o MS Bitburgh, necessitamos de socorro!
A porta que vinha do convés principal começou a bater. A mulher olhou pela janela, e agora os zumbis forçavam entrada também por fora.
— Chamando todos os contatos! SOS!
A porta abriu, e entrou o chefe de máquinas, seguido pelo escocês Bentley, com um buraco na lateral de onde deveria ser o seu pescoço.
Baby baby make me loco
Baby baby make me mambo
Ana Lucía atingiu a cabeça do Chemaq, a música parou, e ela buscou mais projéteis no bolso do casaco. Nada.
Do cantos dos olhos, percebeu que da porta lateral que dava para o convés externo começavam a brotar mais alguns deles. Bentley veio em sua direção, e ela o atingiu com o cutelo, no meio do crânio. Desta vez, não conseguiu puxar de volta, e o escocês foi puxado pra trás por seus próprios pares.
A fonia respondeu.
“MS Bitburgh! Aqui é do porto de Itaqui! Mande sua posição, over!”
A música começou novamente a tocar no fone de Ana Lucía.
Well, everybody’s heard about the bird
Baby, bird, bird, bird
Bird is the word
Baby, bird, bird, bird
Bird is the word
Baby, bird, bird, bird
Bird is the word
Os zumbis invadiam a ponte de comando, e começavam a comer Ana Lucía. Ela tentava se desvencilhar, lembrava dos porões do cargueiro, dos acampamentos na selva, no trem para Nova York. A fonia gritava pedindo retorno da posição do MS Bitburgh, mas ela nada mais podia fazer.
Don’t you know about the bird?
Well, everybody knows that the bird is a word
Baby, bird, bird, bird
Bird is the word
Baby, bird, bird, bird…