Baratária

Rodrigo Santos
15 min readJul 13, 2020

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Lenita odiava anos pares. Foi em um ano par que sua avó morreu, e em seu enterro aconteceu a segunda pior coisa de sua vida: aproveitando a tristeza e a desatenção dos adultos, Lenita se soltou da mão de sua mãe e foi caminhar pelas alamedas do cemitério, enquanto ia o cortejo. Ao passar por cima de uma sepultura — ela não sabia que em cada uma daquelas caixas de cimento com tampas parecidas com a da caixa d´água havia um defunto — a laje, já velha, cedeu, e Lenita caiu dentro do buraco.

A queda foi curta, pouco mais de um metro, e Lenita aterrissou sobre madeira podre, que também logo cedeu sob suas perninhas gordas de criança. De súbito, viu-se deitada de costas no fundo da cova, olhando o céu através de uma moldura retangular, como em uma janela horizontal. Imediatamente, dezenas — dezenas não, centenas — de baratas começaram a subir em seu vestido, seus braços, seu rosto. Aquelas baratas do cemitério, que comiam a carne podre dos defuntos (o coitado que havia sido enterrado no buraco onde caíra Lenita já era apenas um emaranhado de coisa seca e roupas velhas) agora subiam em sua pele rosada. Quando a menina abriu a boca para gritar, as perninhas ásperas das baratas alcançaram seus lábios e começaram a entrar em sua boca. Ela piscava, e sentia as baratas circulando suas pálpebras e cílios.

Não podia chamar por socorro, nem quando viu baratas saindo das órbitas vazias do semicrânio ao seu lado. Apertava os lábios com tanta força que eles perderam a cor. Ela se debatia, mesmo com a dor no osso partido da perna, se sacudia na tentativa vã de espantar aqueles insetos, mas era inútil, era como se afogar, o movimento fluido de milhares de coisas pequenas, marrons e cheias de patas arranhando cada centímetro de seu corpo, entrando por suas roupas e vãos.

Lenita não faz ideia do tempo em que ficou dentro da cova, mas em algum momento um grito de surpresa e júbilo fez descerem braços adultos para trazê-la à tona. Na lembrança das baratas entrando em sua boca, a menina passou dois dias sem falar ou abrir a boca sequer para comer — não com medo de que baratas entrassem, mas que alguma tivesse ficado lá dentro e saísse. Mais três dias no hospital tomando soro, e sendo interrogada por toda a sorte de tias atenciosas, e Lenita voltou para casa. Crianças têm uma recuperação impressionante de traumas violentos, escondendo esqueletos em armários que nem elas mesmas conhecem. Não demorou para a pequena seguir viagem nas brincadeiras e escola, não podendo apenas — óbvio — ver baratas. Agora Lenita odiava anos pares, e também baratas.

E foi em um ano par, 1970, que Lenita foi presa pela repressão. A televisão alardeava o “milagre econômico” do governo Médici com o inchaço do PIB, e nas ruas as pessoas eram presas, torturadas e desapareciam sem deixar vestígio. Muitos amigos conseguiam ir para o exílio, mas Lenita ficara e decidira lutar. Suas ações no movimento revolucionário a deixavam orgulhosa, estava lutando para salvar o Brasil das mãos de facínoras inescrupulosos e cruéis, e foi essa convicção ideológica que a fez entrar de cabeça erguida na cela, mesmo com a boca inchada e dois dentes quebrados. Suportaria, suportaria todo tipo de violência e tortura infligida pelos seus captores, mas não trairia seus companheiros. Morreria, se necessário, para que as gerações posteriores pudessem gozar de algo que ela crescera sem: liberdade.

A convicção é pétrea, mas a carne é mole, e se rompe com facilidade. Durante vários dias Lenita permaneceu nua, entre outras presas, enquanto os seus algozes se revezavam em choques, espancamentos e estupros. Viu um brutamontes — que os outros chamavam de “Parrudo” — quebrar a mão de tanto socar seu rosto, não se lembrava de quando abrira os olhos totalmente pela última vez. As coisas começavam como uma conversa amigável, do tipo “eu posso te ajudar, é só você me dizer alguns nomes”, e terminava com terminais jacaré sendo acoplados em seus mamilos, antes da chave ser virada e ela sentir cada volt entrando pela sua pele em forma de raios imaginários. No quarto dia foi pior, foram todas colocadas em fila e molhadas por uma mangueira de incêndio, sob o pretexto de banho. Depois, encheram a sua boca de sal, e naquela hora o choque foi quase insuportável. “Pela revolução”, ela pensava, “pela liberdade”, trincando os dentes como um cachorro com cinomose enquanto a lâmpada incandescente oscilava com a variação de carga.

Lenita já perdera a noção do tempo — junto com outros dentes — mas ainda mantinha ao ódio, e o ódio alimentava a sua esperança. Ela não sabia, mas era a manhã do oitavo dia, quando após mais uma sessão de pauladas e beliscões de alicate, um de seus algozes, um baixinho com um bigode fino e uma tatuagem do escudo do Flamengo no antebraço a quem chamavam de “Cazarré”, disse algo que a fez tremer pra dentro.

“Eu tenho uma ideia, Parrudo, que vai fazer essa piranha falar. Vamos chamar o Coronel Barata”. E saiu da sala.

Barata. A simples menção da palavra fez Lenita cerrar os lábios inchados até perderem a cor. A lembrança das milhares de pequenas pernas serrilhadas rabiscando entre seus poros lhe trouxe calafrios. “Mas é só o nome de mais um torturador”, pensou, quando viu o Cazarré voltar à sala com uma caixa de sapatos.

“Abre as pernas delas aí”. Parrudo, mesmo com uma de suas enormes mãos engessada, segurou seus dois joelhos e forçou para trás. Nua como estava, a posição deixava seu sexo exposto. Não era a primeira vez seria violada — uma vez os prendedores jacaré da máquina de choque foram apertados em seus lábios vaginais — mas Lenita agora tentara fechar desesperadamente as pernas. Quando Cazarré abriu a tampa da caixa, suas pupilas dilataram e ela voltou a ter seis anos de idade. A caixa estava cheia de baratas. Rindo, ele pegou uma, dessas grandes, de esgoto, e colocou na entrada de sua vagina.

“E agora, você vai dizer quem eram os outros componentes da sua célula terrorista ou não?”

Lenita achou o grito que calara no fundo da cova. Com o polegar, o demônio empurrou a barata para dentro dela. A estrutura áspera do inseto e o seu desespero em fugir a arranhava por dentro. Ela gritava, e gritava, e se debatia inutilmente com os braços amarrados, fazendo a corda de sisal cortar a pele de seus pulsos. Na sua cegueira seletiva, ela via apenas o escudo do Flamengo do braço de Cazarré e seu sorriso.

A primeira barata sumiu dentro de si. O carrasco meteu a mão na caixa e voltou com mais um punhado. “Ah, então a comunistinha tem medo de baratas?” — ria em uníssono com Parrudo, que segurava suas pernas. “Vamos ver quantas baratas cabem nessa xereca arrombada!” Os insetos, pressionados contra a palma da mão do algoz e sua virilha, buscavam loucos algum lugar por onde fugir, e ela sentia, sentia cada um deles entrando em sua vagina machucada, como tentaram entrar em sua boca e em seus olhos naquela sepultura. Ela implorava, e ouvia a voz de Cazarré dizer “Calma, não tem pressa nenhuma, temos todo o tempo do mundo”, enquanto as últimas barreiras de sua coragem caíam sob aquela desumanidade.

E ela falou. Não voluntariamente, ou consciente de estar condenando seus companheiros à morte, mas falou. Em seus berros insanos, ela disse tudo o que queriam ouvir: nomes, lugares, ações. Aquele inferno era muito mais do que poderia suportar.

Só se deu conta dois dias depois, quando foi vestida, encapuzada e largada na Central do Brasil às 3 da manhã. Em casa, sua família comemorava seu retorno e seus amigos arranjavam sua viagem para o Chile, mas em seu íntimo vinha a todo momento a lembrança daquela cela escura e das patas serrilhadas se esfregando na pele fina de sua vagina. Mas o pior era a certeza, mesmo obscura, de que havia destruído a operação e a vida de todos aqueles que a apoiavam. “Você viu que o Randolfo sumiu?” — sussurrou um companheiro às suas costas, e Lenita se retirou, sentindo algo se embolar entre seu estômago e sua garganta.

Na cozinha, ela olhou para o quadro de fios entrelaçados pretos e vermelhos que seu pai envergava na parede, e tremeu. Nunca ligara para futebol, não saberia sequer dizer a escalação da seleção brasileira que iria disputar o tricampeonato no México àquele ano, mas o escudo daquele time nunca mais sairia de sua mente. Ela fechava os olhos e via a garatuja rabiscada no braço de Cazarré, enquanto ele empurrava aqueles insetos asquerosos para dentro dela.

— … e eu só odeio três coisas: barata, anos pares e Flamengo. — na mesa do Amarelinho, na Cinelândia, Lenita ria e gesticulava com o cigarro na mão. Mesmo detestando futebol, aceitara o convite dos amigos para assistir à final do campeonato no bar, apenas pelo prazer do reencontro. Não que não se frequentassem vez em quando, claro, mas era difícil reunir todo mundo de uma vez só — principalmente o Alemão, que calhou estar de férias com a família no Brasil.

— Então é melhor nem beber cerveja, porque o banheiro daqui deve ser cheio de baratas!

— Ah, mas eu seguro a onda. Estou aqui vendo o jogo do Flamengo com vocês, não estou?

Foram anos difíceis para todos, mas aqueles que sobreviveram não tiveram outra opção senão tocar a vida. Alguns entraram na política, outros continuaram sua luta nas salas de aula, nos escritórios. Houve aqueles que decidiram apenas viver. “Aquilo quebra alguma coisa dentro de você, e não tem mais conserto”, disse-lhe Carmem, uma vez, quando se encontraram nas Casas da Banha, alguns anos depois de Lenita ter voltado do Chile. Lá ela terminou os estudos, e quando regressou após a Anistia retomou a sua trajetória, mas não deixava nunca de lembrar aos seus alunos da Universidade o quão perigosos são os caminhos do autoritarismo. O horizonte novamente se ensombrecia, e a História parecia — mais do que nunca! — fadada a repetir-se em farsa.

- Mas o Mengão hoje vai ser campeão! — Randolfo era o mais empolgado, e o mais bêbado. Envelhecido pelo alcoolismo, teria morrido nos porões do inferno se não fosse a intervenção de um tio, que era Capitão de Fragata. Ele nunca soube quem o havia dedurado — assim como nunca conseguira se livrar do álcool que usava como terapia de vida — e essa era mais uma das mágoas que Lenita carregava em silêncio.

— Que cara é essa, Lê?

— Ahn… Nada não, está começando a me dar vontade de mijar.

“Bonito isso, uma professora universitária falando que precisa ir mijar?”, disse alguém na mesa, suscitando imediatamente uma querela sobre a mulher poder falar o que ela quisesse e que esse patrulhamento era machismo. Mas aí o jogo começou, e todas as atenções foram capturadas.

Lenita riu e decidiu tomar coragem para ir ao banheiro. Em plena noite de quarta-feira, as ruas estavam lotadas com uma torcida só, já que o outro time era de fora do Rio. Dentro do bar, alguns se reuniam em bandos, outros bebericavam solitários, mas em tudo havia o rubro-negro que Lenita tanto odiava: bandeiras, bonés, chaveiros e tatuagens.

Tatuagem. Lenita gelou. Em uma mesa do canto, próxima ao banheiro, um homem de cabeça branca olhava atentamente para a TV por cima do balcão. Estava muito velho, a pele enrugada em torno dos olhos e da boca, o escudo do Flamengo em seu braço um pouco desbotado, mas era o mesmo símbolo maldito que assombrava seus sonhos. “Cazarré”, ela sussurrou para si mesma, receosa de ser vista.

Era uma mulher de idade avançada, já quase se aposentando, com dois filhos criados e três casamentos malsucedidos, mas naquele momento o medo que tomou seu coração a transformou naquela garotinha no fundo da cova. Cerrou os lábios até que ficassem brancos, para conter o grito de desespero, como fizera há tantos anos. Quase podia sentir as patinhas minúsculas em sua bochecha. De maneira irracional, quando viu já voltava para a mesa, sem sequer ter ido ao banheiro.

Mesmo em meio à discussão acalorada sobre uma possível falta, seu transtorno não passou despercebido.

— Você está branca, Lenita, o que foi? — sentiu a frieza das próprias mãos quando Samanta as envolveu.

— Não, nada… é que… — as palavras encontravam dificuldade. — Deve ter sido minha pressão.

— Come alguma coisa, vem.

Será que ele a havia visto? Se viu, não esboçou reação. “Daquela distância e naquela idade, não deve nem enxergar a televisão direito”, riu para si mesma, de nervoso. Tanta estrada percorrida, e agora, a menos de vinte passos, lá estava um dos homens que haviam ajudado a quebrar algo dentro dela — como lhe dissera Carmem, um dia, na fila do caixa de um supermercado que nem existia mais. Impune, displicente, quase inofensivo. “Inofensivo o caralho”, sussurrou com os dentes trincados e as unhas já fazendo pequenos buracos na palma de suas mãos. Os choques, as pauladas, os socos, as baratas; a violação extrema a que fora submetida sob risadas, o alcoolismo de Randolfo, a morte de Sílvia, Jorge e William.

— Não melhorou? — Samanta era um amor de pessoa, desde os tempos de escola. Sempre preocupada com todos, a ponto de ser inconveniente.

— Estou melhorando… Olha o jogo, vai começar o segundo tempo já!

— Ok, mas qualquer coisa fala, tá?

Por sorte, o juiz apitara e as atenções todas agora se voltavam para aquele monte de homem correndo atrás de uma bola. Lenita acendeu um cigarro, e depois outro, e depois outro. Aos poucos seus dedos voltavam a ganhar cor, e suas pernas paravam de tremer. Mais um chopp, e outro, e tudo parecia se normalizar. Mesmo sabendo que bebia a poucos metros de um monstro.

A vontade de ir ao banheiro começou a se fazer incômoda. “E se ele me reconhecer?”, pensava, ao mesmo tempo que reconhecia improvável tal ideia. “São muitos anos, ele não deve se lembrar de cada um que torturou…” Queria ter coragem de ir lá e dizer na cara dele, daquele velho filho da puta o quanto o odiava, o que quanto tinha asco por tudo que ele representava. “E se eu falasse para alguém da mesa? Com certeza o Cazarré havia torturado mais alguém ali…” Mas sabia inútil. Ia estragar o jogo, o momento, a vida. Uma reação violenta de um de seus amigos — o Rand, talvez, bêbado com um gambá — podia trazer consequências absurdas. Até que se explicasse, seria apenas um grupo espancando um idoso. E quantos dali não bloquearam a lembrança para poderem viver em paz? Valeria a pena compartilhar pesadelos tangíveis?

— … melhor ir agora.

— Oi, Sam?

— Eu disse que se você for ao banheiro, é melhor ir agora. O jogo está terminando, e pelo visto vai ser empate, nenhum dos times quer jogar.

— E se acabar empate?

— Vai pros pênaltis, e todo mundo vai correr pra mijar no intervalo.

— Tá, eu vou. — disse Lenita, virando a tulipa vazia como se ainda tivesse algum chopp lá, apenas para retardar o momento de encarar mais uma vez seu algoz.

— Então vai, vai que eu peço outro pra você. Você está branca. Vai, vai. — disse Samanta, quase expulsando sua amiga da cadeira.

Lenita ergueu-se de repente todos os césares, e foi em direção ao bar. O banheiro ficava no fundo, um corredor apertado com uma pia, espelho e duas portas marcadas ELE e ELA (com o A do ELA já desbotado na madeira amarela). E entre ela e as baratas que ela sabia lá dentro, Cazarré. Seu bicho papão particular.

Cada passo era uma agonia. Em sua mente, ouvia os gritos dos companheiros das celas adjacentes, via dentes e borras de sangue no chão. E o velho lá, preocupado apenas com o final do jogo. Deslocou-se em sua frente como se desfilasse em um pelotão de fuzilamento. Seus dentes se comprimiam a ponto de sentir a prótese se deslocar em sua gengiva. De esguelha, viu a tatuagem, viu os dedos grossos a segurar a tulipa suada, a pele grossa cicatrizada dos punhos que haviam arrancado tantas confissões.

E passou. Mais alguns segundos e teria se mijado toda, pois sequer teve tempo de se acocorar no vaso imundo. Com a visão turvada pelas lágrimas que não conseguia segurar, viu um pequeno ponto escuro se movimentar na parede, no canto de seus olhos. “Uma barata”, seu maxilar agora tremia, e as lágrimas correram na bochecha quando apertou os olhos. Lá fora, a multidão gritava pelo término do jogo. Lenita não se preocupou nem em se secar, temia estender a mão e o bicho asqueroso subir por seus dedos. Mas agora teria que enfrentar o outro bicho asqueroso, lá fora.

Saiu do banheiro em um salto, e deu de cara com o torturador. “Com licença, minha filha”, sussurrou, avançando em direção de seu WC. O corredor era apertado, só passavam dois se estivessem frente a frente. Lenita parou e sentiu suas costas se pegarem à parede, quase em necessidade de fusão com os azulejos quebrados e sujos, mas mesmo assim a barriga protuberante do velho roçou no seu quadril, fazendo subir arrepios medonhos pelos seus antebraços, e fazendo-a perceber pela primeira vez que era maior do que ele. “Velhos encolhem”, ainda passou por sua cabeça.

A porta escrita ELE se fechou, e Lenita não se mexeu. Lá fora, um grito denunciava o sucesso do primeiro pênalti batido pelo time que odiava. Ela respirou fundo, e conseguiu se mover para a pia. Sentiu a água fria correndo em suas mãos trêmulas, o barulho semelhante ao barulho da urina do velho caindo na água suja do sanitário, por detrás da porta, e olhou-se no espelho. Seu rosto estava esmaecido, como se todo o sangue estivesse se evadido para algum outro corpo que não os eu. E na palidez ela viu as linhas de seu rosto, linhas do tempo e linhas causadas pelos punhos de Cazarré. Era um velho, e agora estava ali, a menos de dois metros dela.

No momento em que a multidão lá fora gritava e comemorava mais um gol, ela ouviu a descarga, e a porta se abriu. Suas mãos ainda estavam sob a torneira, a água correndo, e Cazarré ficou ali, esperando. Lenita não tinha coragem de olhar para ele, nem sequer se mover, quando ouviu sua voz, que mesmo envelhecida, trouxe para si o desespero de tanto tempo atrás: “Calma, não tem pressa nenhuma. Temos todo o tempo do mundo”.

Lenita avançou com o ombro na direção do peito do velho, e o lançou para a porta escrita ELA, com o A desbotado. Sem equilíbrio ou força, seu corpo foi caindo para trás, com os braços buscando algo em que pudesse se agarrar, a tatuagem do Flamengo virada para cima.

Lá fora, mais um grito de júbilo. Dentro do banheiro, Cazarré apenas gemeu quando sua bacia se chocou contra a beirada do vaso sanitário. “Filho da puta”, Lenita disse entre dentes, sem abrir totalmente os lábios, sem gritar. “Desgraçado!” ela deu uma pezada com a sola do pé no ombro direito do homem caído, que sequer teve tempo de se proteger. Sem avaliar o risco do ato, começou a disparar socos na cabeça do velho, um após outro, intempestivamente, sem prática ou método, apenas ódio. Tanto a falar, tanto a jogar na cara daquele monstro, os anos de exílio, a morte de seus amigos, a dor que sentia em seus ossos, a sensação desagradável que lhe dava o sexo ao se lembrar das baratas em sua vagina, tudo, tudo. Mas Lenita não falava, apenas batia, batia por todos os séculos, por todas as dores.

O velho não se movia, e Lenita parou. Respiração ofegante, punhos machucados e manchados com o sangue de seu — outrora — algoz. “Você sabe quem eu sou, filho da puta?”, disse, baixinho. Cazarré não esboçou reação. A cabeça pendida, o rosto coberto de pequenos rasgos, parecia respirar com dificuldade. Ela se abaixou e pegou em seu queixo. “Olha pra mim. Você sabe quem eu sou?”

Inesperadamente, os dedos de Cazarré se fecharam fortemente em seu punho. Abrindo com dificuldade apenas o olho esquerdo, o menos inchado, ele disse: “Deve ser alguma comunistinha de merda que eu comi quando era da DOPS”.

Assustada, Lenita tentou puxar o braço, mas subestimara a força do velho. Ele começou a rir, os lábios fendidos, os dentes manchados de sangue. Ela começou a se desesperar, puxou com um safanão a sua mão, e nada. “O que você vai fazer agora, sua comunistinha de merda?” No desespero, ela buscou alguma coisa com que pudesse acertar o velho que começava a querer se levantar. E sua mão esquerda achou. Algo pequeno, áspero e frio, que se moveu e arranhou a pele fina de seus dedos. Uma barata.

Lenita pegou a barata, e enfiou no olho esquerdo de Cazarré. Empurrou com o dedão, como ele mesmo já empurrara para dentro dela uma vez, a barata, sentido se romper a massa gelatinosa do olho do velho. Ela empurrava, e empurrava, até sentir o seu polegar quente e melado, se movendo dentro da cabeça do homem. Ele gritou, e seus gritos se confundiram com outro grito de gol lá fora, um grito maior, de vitória, de fim de campeonato.

Os dedos grossos do velho escorregaram de seu punho, libertando-a. De pé, ela olhou pela última vez para o corpo desfalecido no chão do banheiro, e fechou a porta, com ele lá dentro. Quando lavava o sangue das mãos, um homem entrou no corredor que dava pros sanitários gritando “É campeão! É campeão!” e foi mijar.

Lenita saiu sorrindo, e a primeira imagem que captou da televisão era a de vários jogadores de camisas rubro-negras se abraçando, e as palavras piscavam “Flamengo — Campeão da Copa do Brasil!”.

Ela apenas sorriu. Quando chegou à mesa, gritou com força, como nunca se permitira antes, se juntando aos amigos: “É CAMPEÃO! É CAMPEÃO!”

— Ué, mas você não odiava o Flamengo? — perguntou-lhe a esposa do Alemão, em um português desajeitado e de pouca prática.

— Sim. E baratas, e anos pares.

— E não tem mais?

— Não, hoje tudo é festa! — disse Lenita, esfregando nervosamente o polegar da mão esquerda contra o indicador.

Hoje, tudo era festa.

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Rodrigo Santos
Rodrigo Santos

Written by Rodrigo Santos

Escritor de São Gonçalo — RJ. Contista, romancista, poeta, roteirista. Autor de “Macumba”, “Se o medo tivesse um som”, entre outros. Evoé!

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