Armpits

Rodrigo Santos
4 min readApr 25, 2019

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Não há ciência exata que defina o que faz com que nos apaixonemos. Hão de convir comigo que a paixão é um processo irracional e estúpido, um tolo supressor de personalidade que frequentemente nos coloca em situações ridículas de “putaqueopariu o que que eu estou fazendo?”. Em particular — tanto na teoria quanto na prática — acredito que não nos apaixonamos pela outra pessoa, em sua completude — até porque o ser humano, em toda a sua dimensão, é altamente desapaixonável. Apegamo-nos inicialmente a um caractere apenas, não ao todo. O aprisionamento posterior se faz na intenção de manter o elemento apaixonante junto a si, mesmo que o conjunto não interesse. É como comprar o CD apenas para ouvir uma música, ou assinar aquele combo intragável de sua operadora de telefonia apenas pela franquia maior de dados. Se o todo depois se mostrar interessante (e você perceber que aquele disco não era só “Sweet Child O´Mine” ), a paixão vira amor — e aí é outro papo. Se não, ela dura apenas tempo que você conseguir suportar o fardo de carregar toda uma árvore apenas por um fruto.

Conheço amigos que se apaixonaram por narizes, um outro por timbre de voz. Uma vez, um conhecido confessou ter se encantado pelo espaço entre a orelha e o início do cabelo a ponto de querer morar lá. Outro casou-se com uma tatuagem. De minha parte — e não há orgulho nenhum em confessar isso, faço-o apenas a bem da veracidade do relato — tenho um fascínio especial por… axilas. Armpits. Suvacos — ou sovacos, como preferir. É, eu sei. É estranho. Mas sou bem resolvido com isso — a terapia me ajudou inclusive a descobrir a origem dessa fixação (não, não conto. Não é importante para a narrativa. Sigamos.). Não há nada mais agradável que a pele fina, elástica e lisa que une o braço ao tronco. Sempre quente e úmida, a rescender de perto — muito perto — um cheiro doce e persistente, que não pode ser mascarado com cosméticos. Eerr… Eu sei, muitos pensarão em bucetas, mas bucetas não andam por aí em exposição — sovacos sim, principalmente no verão intermitente do Rio de Janeiro (cortar na revisão). Ônibus lotados, camisetas; vestidinhos de alça de bujão e feiras livres. Meus olhos marejam, minha boca seca e sorri. Mais de uma vez fui arrebatado pela magia de suvacos encantadores, e sustentei relacionamentos pompeianos só por mais algumas noites de sono com o rosto enterrado sob alguns braços.

Lembro-me bem o momento em que me apaixonei pelas axilas de Charlotte. Ela estava com os braços sobre a balaustrada que cercava a piscina, com um vestido longo de panos esvoaçantes e nenhuma manga. Eu saíra do salão para respirar um pouco de algo que não fosse perfume de gente rica e gabolice. Minhas incursões nos bailes da corte eram precisas, na ânsia de fazer algum contato que privilegiasse meu caminho na literatura. Mais preocupado em achar um editor ou jornalista influente do que uma donzela incauta, fui arrebatado por aquelas axilas juvenis, ainda sem manchas.

Não foi preciso muito esforço na aproximação. Damas geralmente se sentem entediadas pela falta de aventura em suas vidas pasteurizadas pelo dinheiro, e um rato insidioso como eu sabe exatamente os nervos que devem ser pinçados para movimentar a marionete. Na manhã seguinte Charlotte voltou para a Europa, me deixando sozinho naquela suíte do Copa ainda com o suor ácido de suas axilas em minha língua e em meu nariz.

Trinta anos se passaram desde aquela noite. Queria poder dizer que construí uma sólida carreira de escritor, mas a publicação de alguns garranchos não me trouxe sequer o suficiente para pagar meus boletos. Sobrevivo de conhaque e favores, e nunca mais encontrei nenhum suvaco como as de Charlotte. Escrevi dois romances e alguns poemas ruins em sua homenagem, e acompanhei sua vida de duquesa pelas revistas do consultório de meu terapeuta.

Parado em frente à tela, batucando teclas envolvido na bruma de café e cigarros baratos em minha quitinete no Catete, um dia recebi um telefonema de Charlotte. “Eshtou no Rrrio, querro ver você”, disse sussurrada, com o desconforto de quem não fala português no dia a dia. “Você sabe onde eu moro, afinal descobriu meu telefone”. Em meus lábios a lembrança da textura áspera da pele sob seus braços, o salto inopinado de meu coração desgastado.

Em meia hora, um carro preto desproporcional à estreita rua estacionou em frente ao meu edifício enquanto eu fumava na janela, mas não abriu a porta. Desci antes que os travestis do Catete se iludissem com a perspectiva de um programa rentável e bati de leve na janela, com os nós dos dedos pálidos de ansiedade.

A porta se abriu e Charlotte saltou. Sem me dirigir uma palavra, dispensou o motorista e se deixou conduzir pelas mãos acetinadas para a minha alcova, dois andares de escada acima. Trocamos um beijo educado quando fechei a porta e a janela, com lábios se tocando como asas de beija-flor. “Não sou maish nenhuma menina”; “Deixe de bobagens, também não sou”, balbuciei em sua orelha. O próximo beijo foi uma explosão de línguas e saliva e dentes, regendo mãos e braços saudosos. Ela tentou se desvencilhar para se despir no banheiro, mas minha urgência clamou por agora, e puxei-a para junto como se a quisesse dentro. Trinta anos de espera. Meus dedos ansiosos descerraram as alças de seu vestido, e lá estava ela nua novamente à minha frente.

Charlotte havia envelhecido, é verdade, mas seu corpo ainda mantinha as curvas e sardas, causando inveja a muita menina de 40 por aí. Porém, bastou que o vestido descesse para o embrutecimento imediato de meu amor, há tantos anos marinando na saudade.

A culpa não era dela. Apenas aquelas não eram mais as mesmas axilas.

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Rodrigo Santos
Rodrigo Santos

Written by Rodrigo Santos

Escritor de São Gonçalo — RJ. Contista, romancista, poeta, roteirista. Autor de “Macumba”, “Se o medo tivesse um som”, entre outros. Evoé!

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