A noiva acidental

Rodrigo Santos
14 min readDec 11, 2023

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— Você vai contar pra tua mãe quando, Naiara?

A ponte estava uma lástima, o ônibus quase não se movia. Desde que começara a trabalhar no Rio, há oito anos, Naiara encarava aquele trânsito todo dia, pra ir e pra voltar pra São Gonçalo. Morava no centro, pegava o amarelinho da viação Coesa até o Castelo. Um dia, atrasada, pegou o primeiro que passou, um 520 da viação Galo Branco. Ia saltar na Cidade Nova e pegar o metrô, não dava pra esperar. Foi o dia em que conheceu Carla.

— Oi? Desculpa, não ouvi. Estava olhando aqui. Será que esses navios estão todos abandonados? É muito barco à toa.

— Nairobi. — Carla começou a chama-la de Nairobi depois da série do Netflix com uma personagem com esse nome (e que tinha um nariz parecido com o seu, Carla dizia), série que assistiam juntas em seu quarto fechado bebendo amor e cerveja. “Pelo menos ela não está chateada”, pensou Naiara.

— Oi, Nêga.

— Você já decidiu quando você vai contar?

— Ah, Nêga… É complicado…

— Vai me dizer que está com medo? Logo você?

Mas era complicado mesmo. Naiara morava apenas com sua mãe, o irmão mais velho já tinha se casado, pai nunca teve. A mãe era muito religiosa, católica fervorosa, legionária de Maria. Como dizer pra ela que estava namorando uma menina? Não que ela se metesse na vida da Naiara; o problema é que, apesar de serem só as duas, não tinham criado amizade ou cumplicidade. A hierarquia era severa em sua casa, mãe é mãe e filha é filha e acabou.

— Não é medo.

— Naiara, a gente já está junto tem um tempo, vai. Não é possível que Dona Iracema ainda ache que sou só sua melhor amiga, né?

— Cacá, minha mãe já implica com suas tatuagens, imagina se ela soubesse que estamos pensando em morar juntas? Espera, dá tempo ao tempo…

— Ela vai ter que entender, Nairobi. Ou pelo menos aceitar. — Carla pegou a mão de Naiara e alisou os sulcos formados pelos tendões dos dedos. Ela sabia como tocar a pele da namorada de um jeito que acalmava e soltava faíscas ao mesmo tempo. — A gente se ama, não ama?

Aquele olhar. Naiara não conseguiu manter por muito tempo a encarada. Era sempre assim. As conversas no ônibus faziam o engarrafamento passar mais rápido, Naiara começou a pegar o 520 todo dia, mesmo tendo que pegar metrô depois, só pra conversar com Carla. Uma sexta-feira, um happy hour (“ah, a gente já perdeu tempo pra caramba no ônibus mesmo, que mal há em tomarmos uma cerveja?”), um beijo roubado na hora de se despedir. Não era a primeira menina que Naiara beijava, mas aquilo tinha sido… diferente. Ainda era.

Naiara desviou o olhar de Carla para resistir à tentação de beijá-la ali mesmo, e viu o anel no chão do ônibus.

— Olha! — colocou a bolsa no colo de Carla e se abaixou.

— O que foi, Nairobi? O que você derrubou aí?

Era uma aliança de ouro, da grossura de um hashi. Naiara pegou e deu uma esfregada de leve. A aliança brilhou.

— Olha isso!

— Caramba, tava aí no chão? Vê se tem alguma coisa escrita, alguém deve ter perdido.

Dentro da aliança, estava gravado, em letras cursivas: “pra sempre — 26/10/1949 — Diógenes”.

— Olha, daqui a um mês! Puxa vida, 1949… Deve ser alguém bem idoso que perdeu, não? Ainda mais com esse nome, Diógenes. Nome de velho.

— Ou era da mãe, ou do pai da pessoa, ué. Alguém devia estar levando pra penhorar e perdeu. Será que cabe no meu dedo? Parece grande demais. — Naiara colocou a aliança no dedo anelar da mão direita. Coube perfeitamente.

— Olha! Estou noiva!

— A ideia é essa, né? Mas você tem que falar com sua mãe…

Naiara deu um estalinho em Carla no ônibus apagado quando estava chegando a seu ponto. Levantou-se, pegou a bolsa e recebeu um discreto beliscão na bunda de sua namorada. “Para, boba!”, e sorriu. Queria ter mandado beijo da calçada, mas Carla estava do outro lado, então só viu o ônibus ir embora, com o mesmo sorriso e a pele quente onde o beliscão tinha pegado.

Era cedo quando mandou a última mensagem para Carla e foi dormir. Um sono agitado, sincopado, com pelo menos duas paralisias — aquelas em que você acorda mas não consegue se mexer. Em uma delas, Naiara teve a nítida impressão de que tinha alguém no quarto, um homem. Parado, terno de risca de giz, bigodinho fino sobre o lábio superior. Parecia saído de uma novela de época.

Acordou em um salto, com a mão de sua mãe que lhe chamava para dar a notícia: sua melhor amiga, a Carla, é, aquela que dorme aqui de vez em quando… tinha morrido. Saiu para comprar cerveja, tarde da noite, e foi atropelada por um ônibus em alta velocidade. A mãe chorou, discretamente, junto com ela, e Naiara teve certeza de que a mãe sabia. Aquele choro de Dona Iracema era íntimo, secreto, flagrado muitas vezes por ela quando menina, na madrugada. Era uma mulher muito sovina com os próprios sentimentos.

Não teve coragem de usar preto no velório. As amigas sabiam, as famílias desconfiavam. Mas Naiara se sentia muito nova pra ser viúva, achou falta de respeito. No caixão, a expressão congelada — congelada pra sempre! — no rosto da namorada era de susto, de horror. Naiara sempre achou que mortos tivessem uma expressão serena, mas não Carla. “E quem vai me chamar de Nairobi agora?”, ela chorava de soluçar.

Quando andava pelos estreitos caminhos entre os jazigos do cemitério municipal para chegar na gaveta onde Carla seria sepultada, viu um homem parado mais acima, mais pra perto do cruzeiro, e se lembrou da noite. Era o mesmo homem? Olhos mareados e inchados, a imagem fugiu sem muita dificuldade, não estava mais lá. A mãe a abraçava, uma das amigas deu uma rosa para que ela colocasse no caixão.

Nem lembrava como se reza, mas parou em silêncio enquanto os homens esperavam para selar com a pá de cimento a gaveta. Em sua cabeça, o toque de Carla, o cheiro. O gosto. Fechou os olhos, mordeu o lábio inferior e cravou as unhas na palma da mão. Que cada um rezasse da maneira que achasse melhor. Colocou a rosa e deu a permissão para os coveiros, já quase impacientes. Viu-se rodando no dedo anular a aliança que achara no ônibus, no dia anterior, quando Carla ainda vivia e beliscava a sua bunda.

Naquela noite, dormiu como uma pedra, com o auxílio de remédios e uma dose de Campari furtada à revelia. Não viu o homem parado no canto do quarto.

Só na noite seguinte.

“Não se assuste, não quero lhe fazer mal.” — ela ouvia a voz mas não via a boca do homem se mexer, a linha do fino bigode impassível. A imagem era difusa, como a de uma televisão antiga com o sinal ruim. Estava parado no canto do quarto de Naiara, mãos unidas na frente do corpo, terno de risca de giz. Olhos fixos.

A menina deu um salto e se sentou na cama. Olhou em volta. Olhou novamente para o homem. Piscou três vezes. Ele ainda estava lá.

“Não, não é um sonho”.

— Como você está falando se eu não vejo sua boca se mexer? — tantas perguntas pra fazer, e ela escolhe ser pragmática.

“Eu falo pra sua cabeça, não para seus ouvidos. Pelo menos, por enquanto.”

— Quem… Quem é você?

“Meu nome é Diógenes. Sou o seu noivo.”

— Que história é essa de noivo? — e se lembrou, metendo a mão na aliança.

“Isso mesmo. No momento em que você colocou a aliança, nossos destinos se entrelaçaram.”

Naiara tentou tirar a aliança, mas ela não saía. Parecia ter diminuído no seu dedo, quase enforcando.

“Você é minha agora. Só minha.”

— Mas que bagulho doido é isso? Eu acho um anel no ônibus, coloco no dedo e viro noiva de um fantasma?

“Naiara!”, sua mãe gritou do corredor. O homem no escuro sorriu.

“Até logo, minha noiva…” — e sumiu. Quando a mãe entrou no quarto, ele não estava mais lá.

— Ô, minha filha.. — a mãe a abraçou, Naiara só conseguia chorar de soluçar. — Passou, passou… Foi só um sonho ruim…

E talvez tivesse sido isso mesmo, a menina disse pra si. No dia seguinte, foi para o trabalho de Coesa, nunca mais pegaria o 520. No trajeto da ponte, ainda chorou, lembrando de Carla. “Só minha”, disse o homem. Será que ele tinha algo a ver com a morte de sua namorada? “Tá viajando já, Nairobi”, ela disse pra si mesma. Queria mesmo era não ir trabalhar, ficar em casa. Queria contar pra alguém do sonho estranho com o homem, mas pra quem? A mãe ia achar que ela estava louca.

Mas na noite seguinte o homem voltou, pra deixar bem claro que não era apenas um pesadelo.

“Boa noite, minha noiva.”

Ele estava mais nítido, como uma foto em um processo antigo de revelação, aquele que o fotógrafo banhava o papel numa aguinha e a imagem ia aparecendo.

— Mas quem é você?

“Já te falei, Naiara, eu me chamo Diógenes, está gravado na aliança que você está usando. A nossa aliança de noivado.”

— Eu não quero ser sua noiva!

“Você já é. Esperei por muito tempo… Agora falta pouco para a nossa união, menos de um mês.”

Naiara desesperada, tentava tirar a aliança. Não tinha como. Era como se ela tivesse engordado usando um anel de criança. Ou o anel tinha diminuído.

“Estava muito perto do nosso casamento… Até que minha doce amada foi arrebatada pela morte, atropelada por um ônibus. Casaríamos na igreja matriz, no dia 26 de outubro de 1949.”

- É a data da aliança.

“Agora será a data de nossa união. Não resisti, e acabei morrendo de tristeza. É assim que chamavam, antigamente. Eu apenas não quis mais viver solteiro neste mundo.”

— Ôxi, e não tinha outra mulher pra você arrumar não, criatura? Precisava se matar por isso?

O homem parecia falar para as paredes, e não deu atenção para a pergunta.

“Esperei todo esse tempo nas sombras, esperando que minha amada voltasse. Quando você colocou a aliança em seu dedo, eu vi que era você.”

— Olha aqui, seu Diógenes, essa história toda é uma palhaçada sem tamanho, viu? Não sou sua noiva, não acredito em reencarnação e nem acho você bonito, tá?

Mas a imagem já se desfazia em um sorriso, e Naiara se viu falando sozinha. Na gaveta da cômoda, achou um maço de cigarros que Carla deixava lá e ficou fumando na janela até o dia amanhecer.

Comprou uma garrafa de Campari pra deixar no seu quarto, e bebia antes de dormir para não ter que ver fantasmas. Por dois dias apagou, sem sequer tomar banho. Na sexta-feira, saiu com o pessoal do trabalho (“Você precisa espairecer, você é nova, não pode ficar trancada em casa”. Trancada em casa era só o que Naiara queria evitar).

Pessoal foi indo embora aos poucos e, como sempre, ficavam só os mais resistentes — ou insistentes. Já era madrugada e estavam apenas ela, o Fábio da contabilidade e Olívia do RH. Por alguns momentos, Naiara até riu, esquecendo um pouco de sua semana conturbada.

— E esse noivado aí, Naiara? Conta mais pra gente? — nem tinha necessidade de Olívia perguntar, já que a seguia em todas as redes sociais. Mas e a curiosidade?

— Nada, bobagem… — Naiara virou o copo e pegou o cigarro para acender.

— Você está-estava… noiva?

Agora era Fábio que perguntava. Naiara preferiu ignorar o “está-estava”. Por que diabos ainda era da conta de alguém (em 2020!) de quem você ficava noiva ou não?

— Não, bobagem. — ela preferiu esclarecer logo, é do mistério desnecessário que a fofoca se alimenta. — É só um anel que achei no ônibus e coube no meu dedo.

Quando Olívia foi ao banheiro, ela perguntou para o Fábio:

— Olha, se eu estiver atrapalhando, você me avisa, viu?

— Atrapalhando o quê? Deixa de ser boba.

— Sei lá, você e Olívia, às vezes estão esperando eu ir embora e eu fico aqui empatando vocês…

Fábio então colocou a mão em seu joelho, se aproximou e disse perto do seu rosto:

— Na verdade, quem está atrapalhando é a Olívia.

Naiara engoliu em seco, não sabia nem o que dizer. Olívia já voltava do banheiro, sorrindo em seu caminhar levemente frouxo. Fábio se afastou, como se nada tivesse acontecido. A conversa ainda durou, e toda vez que ela olhava para Fábio ele estava olhando de volta, com um leve sorriso. “Bom, mal não há. E o Fábio sempre foi um amor, além de bonitão”, ela pensou.

— Gente, está tarde, tenho que ir. Não aguento mais beber essa cerveja quente. — a voz de Olivia já espelhava o caminhar, não mais seguia linha reta.

Naiara se levantou de pronto.

— Ah, vou também, já está na minha hora.

— Eu levo vocês. — Fábio também se afastou da cadeira. As duas mulheres riram.

— Leva como, Fábio? Você bebeu mais do que a gente!

— Eu peço um carro no aplicativo aqui, deixo vocês em casa e marco a minha casa como último destino, que tal?

Assim foi feito. Estrategicamente, Olívia desceu primeiro, na Venda da Cruz. Fábio morava em Neves, mas insistiu que Uber primeiro deixasse Naiara no Rodo, e depois voltava.

Quando estavam apenas os dois no banco de trás, ele se aproximou. Passou a mão no rosto de Naiara, e eles se beijaram. De olhos fechados, ela sentia aquele beijo, aquelas mãos tocando sua pele. Não era de ferro, ora essa.

Quando ela abriu os olhos, o rosto de Fábio estava tão perto que ficou desfocado. E ela se lembrou do Diógenes.

— Fábio, eu…

— CARALHO! — o motorista do Uber puxou o volante todo pra direita, e o carro quase capotou. O corpo de Naiara foi lançado para cima do rapaz, e quando o carro voltou para o prumo eles estavam juntos.

— Filho da puta! Desculpa, gente, mas o ônibus foi cortar o caminhão de lixo e invadiu a pista. Se eu não tiro, já era!

Fábio olhou para Naiara em cima dele e riu. Ela riu também, mas de nervoso, e se ajeitou de volta no seu lugar.

— Naiara… — Fábio se adiantou para beijá-la novamente, e ela ergueu as duas mãos espalmadas, sem com isso precisar tocá-lo. Ele parou.

— Fábio, desculpa. Não estou em um momento legal.

— Não, tudo bem. Eu estou de olho em você tem um tempo, e vi como você ficou triste com a morte de sua amiga. Posso esperar. Principalmente agora que já sei o quanto é bom esse beijo. — e sorriu.

Ela sorriu também. Afinal, não era culpa dele. O carro chegou, e Fábio desceu, deu a volta no carro e abriu a porta.

— Você me desculpa mesmo, moça. — o motorista ainda estava se recuperando do susto.

— Tranquilo, moço. Foi culpa sua não. Boa noite.

Quando ela desceu, Fábio a abraçou. Naiara correspondeu ao abraço, de maneira a deixar claro mais uma vez de que era só isso mesmo. O rapaz entendeu, e não forçou.

— Boa noite, e obrigado por ter me trazido.

— Boa noite, Naiara. Até segunda, no escritório. — ele se aproximou, respeitosamente, e beijou seu rosto. Entrou no carro, no banco da frente, e ainda disse para o motorista: — Bora, meu piloto de fuga. Sem emoção agora, hein?

Naiara viu o carro sair, e entrou no prédio sorrindo. Fábio era gente boa. Mesmo que tenha sido apenas uma estratégia, achou legal o recuo por parte dele. Talvez ele entendesse mesmo que não era o momento, quem sabe?

Jogou-se na cama com a mesma roupa que veio da rua, sem banho. Não viu o Diógenes no canto do quarto apertando os dentes, com raiva.

A primeira ligação foi a de Olívia, desesperada. Não, ela não estava no carro com Fábio. E aí ela olhou o grupo do trabalho e viu a notícia. O carro de aplicativo em que voltaram da noitada havia sido abalroado por um ônibus e capotou, na altura do Porto Velho. Se Fábio estivesse no banco de trás, talvez tivesse sobrevivido. Na frente do veículo, o teto do carro desceu até o painel. Sem sobreviventes.

Naiara não conseguiu ir ao enterro. Não conseguiu fazer nada naquele dia. À noite, esperou resignada pela incômoda visita.

— Foi você, não foi?

Agora os lábios de Diógenes se mexiam, e sua imagem parecia ter passado para uma definição melhor, como um filme baixado na internet.

“Eu já disse que você é só minha. Não posso admitir que um rapazola tenha liberdades com a minha noiva.”

— Mas eu não sou a sua noiva! Me deixa em paz!

“Em breve, minha querida… Falta pouco, agora. Não será preciso esperar muito. Quanto mais cedo você aceitar isso, menos sofrimento haverá.” — a aparição então, dizendo isso, se aproximou da cama e estendeu a mão para tocá-la. Naiara, horrorizada, só conseguiu gritar pra dentro.

A mão fantasmagórica chegou a poucos centímetros de seu pé, e parou.

“Em breve poderei sentir a sua pele sob meu toque, meu amor…” — Diógenes sorriu, e desapareceu.

Naiara tinha medo de contar pra mãe, agora. Ou pra qualquer pessoa. Quase não comia mais, seus olhos começaram a se afundar, emoldurados pelo maxilar. Sua mãe insistia, ela dizia que não era nada. Os dias se passavam, e as semanas.

Ela tentou com sabão. Tentou com o macete da linha de nylon que tinha visto em um programa da televisão. Nada, a aliança não se movia. Pesquisou, e descobriu que Diógenes havia sido motorista de ônibus em São Gonçalo, nos anos 40. Em 1949, perto de seu casamento, perdeu a noiva e morreu “de tristeza”, como ele próprio lhe havia confidenciado.

Ela não sabia mais o que fazer. A cada dia a aparição se tornava mais visível, mais… palpável. Um dia, teve coragem e jogou as informações na cara de Diógenes. “Ora, meu amor, era só ter me perguntado, nada disso é segredo”, ele sorria, sentado à beira da cama. Podia ser impressão de Naiara, mas ela sentia a cama afundar um pouco quando ele fazia isso. Agora, ela só chorava.

Depois de muita insistência, permitiu que a mãe a levasse à igreja. Não a Matriz, não conseguiria entrar ali. Foram na Igreja de São Pedro, no Alcântara. “Você está doente, minha filha, vamos rezar para que Nossa Senhora Aparecida passe na frente e lhe devolva a sua saúde.

Na porta, a mãe molhou a ponta dos dedos na pia de água benta, ensaiou uma genuflexão e entrou. A missa já havia começado. Naiara colocou então toda a mão direita na pia, imergindo a aliança. O anel começou a esquentar em seu dedo, e a água começou a ferver levemente, deixando subir pequenas bolhas. A moça então deu um suspiro, e desmaiou.

Quando acordou, o padre dizia pra sua mãe que ela precisava era de suplemento alimentar e acompanhamento psiquiátrico. “Deve ser anorexia, Dona Iracema, essas jovens de hoje com esse negócio de rede social…” As vozes chegavam de longe, como se ela estivesse dentro da piscina.

Na véspera do dia marcado na aliança, Diógenes apareceu nitidamente para Naiara.

— Meu amor… É chegado o dia. Amanhã, a essa hora, estaremos casados para sempre, até que a morte nos separe.

Naiara chorava, encolhida, abraçada com os joelhos.

— Por favor… Me deixa em paz…

— Teremos paz, minha amada. E amor, muito amor.

Diógenes se sentou na beirada da cama, e sua mão tocou o joelho de Naiara. Ela sentiu o toque, gelado, se irradiando pela sua carne. O cheiro de podridão, de chulé molhado, daquela mão próxima a seu nariz, fez seus olhos arderem um pouco mais.

— Tão macia… Mas eu preciso me controlar. Só poderemos depois de casados, não é, minha doce noiva? Não se preocupe, respeitarei os antigos preceitos, apesar de minha ansiedade. E assim, quando consumarmos o nosso casamento na carne, voltarei ao mundo, como seu marido.

O toque — e a promessa funesta — de Diógenes fizeram Naiara despertar de seu torpor e se encolher mais, para longe daquele homem. Diógenes então se levantou, deu um passo atrás e desapareceu, o bigode fino emoldurando o sorriso mais assustador que Naiara tinha visto. Mesmo com o estômago vazio, teve ânsias de vômito que faziam doer a barriga pela violência.

Ela não queria sentir aquele toque novamente em nenhuma parte do seu corpo, não queria ser violada por aquele monstro e ainda menos trazer aquilo de volta à vida. “Até que a morte nos separe”, ele disse.

— Teu cu. — respondeu, entre soluços.

Na manhã seguinte, a mãe tinha levado mingau de fubá, banana e vitamina de abacate para o café da manhã de Naiara, e a encontrou deitada sobre uma poça de sangue. A faca serrilhada de cortar pão havia entrado no espaço entre o dedo médio (ali onde os tendões formavam um sulco), e separado o anelar e o dedo mínimo até quase o pulso. Os dois dedos e o pedaço de carne que haviam sido arrancados jaziam ao lado da mão. Desesperada, amarrou o lençol no pulso da filha para tentar estancar o sangue. Antes que a ambulância do SAMU chegasse, algum vizinho tinha dado a ideia de colocar os dedos no gelo, esperançoso com a possibilidade de um implante.

Nenhum sinal da aliança.

  • Publicado na coletânea “Pessoas como eu possuem objetos amaldiçoados”, 2020, Editora Serpentine.

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Rodrigo Santos
Rodrigo Santos

Written by Rodrigo Santos

Escritor de São Gonçalo — RJ. Contista, romancista, poeta, roteirista. Autor de “Macumba”, “Se o medo tivesse um som”, entre outros. Evoé!

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